10 de mar. de 2006

Trinta anos esta noite* - Bodas de Pérola



Já ia pela soleira da porta quando se viu refletida no espelho do hall. Quanto custara tudo aquilo?

O apartamento, a vista pro mar, os espelhos venezianos, os olhares, os cristais Saint Louis, as lentes de contato coloridas, as porcelanas Cia.das Índias, os implantes dentários, os carros, o fortuito no meio da tarde, a fazenda, os tecidos italianos, os salários dos empregados, a mesada da sogra, as viagens, as escapadas pra serra, as escolas dos filhos na Suíça, a fantasia de destaque na Escola de Samba, as peles, as plásticas. Quanto custou o vestido que deslizava por suas curvas e enxertos? E as pérolas verdadeiras que lhe enforcavam dando 30 voltas em seu pescoço? Quanto custaram?

Trinta anos desde o dia do sim e o noivado na casinha de vila, no subúrbio. Quanto custara a casinha de subúrbio ganha por seu pai no dia do arranjo de seu casamento com o patrão? Quantos custaram seus dezoito anos e a carta de despedida do noivo sargento da aeronáutica? Quanto custou o buldogue francês trocado pelo pequinês? Quanto custara a cirurgia de apendicite, em Paris, em plena lua-de-mel? Quanto custaram as primeiras madrugadas sozinha, as cartas e os telefonemas anônimos? Quanto custaram as secretárias e as viagens de negócio? Quanto custara a desintoxicação do filho e o aborto da filha? Quanto custara a festa de daqui a pouco? Quanto custara a viagem no dia seguinte, um cruzeiro no mar Negro?

Quanto custara o silêncio imposto, a vontade abandonada, o desejo reprimido? Quanto custara toda uma vida trocada por tanta porcaria?

Muito menos do que a pistola automática que levava na bolsinha de festa, cravejada de pérolas.

*Trinta Anos Esta Noite , 1963, tradução do título original Le Feu Follet (Fogo Fátuo), filme de Louis Malle sobre os últimos dias de um alcoólatra, com uma trilha sonora genial composta por Erik Satie.
Ro Druhens

3 comentários:

Márcio disse...

Porra, Malle e Satie é uma combinação bombástica!! Vou procurar! O texto? Ah!!! Nem se fala, né?

Anônimo disse...

Bom você tinha obrigação de se safar dessa, não é? :) Prá variar, o fez com brilhantismo!

Beijão.

Anônimo disse...

Citar o Malle foi golpe baixo, principalmente porque nunca vi esse filme. Mas vá lá...amar é nunca ter de pedir perdao!