18 de out. de 2006

Tv por Assinatura


Ricardo Mello


Passou a tarde vendo televisao.

No auge dos seus 11 anos os canais em ingles e os desenhos pareciam chatos.

Escolheu o canal de filmes nacionais.

Ao final da tarde a mae gritou que ja' era hora de se arrumar.
Era dia de festa e os convidados estavam por chegar.

-Voce esta' linda, disse a tia.

Mariana sorriu com movimentos duros. A roupa e o cabelo poderiam se
desarrumar.

Logo mais foi o tio que chamando atencao de todos perguntou:
-Mariana, voce ja' sabe o que vai ser quando crescer?

Ela balancou a cabeca em sinal positivo.

A festa parou, curiosa pra ouvir.

A mae estufou o peito.
Minha menina.

Mariana abriu o sorriso e respondeu:

-Tio Jorge, quando crescer eu vou ser...

Cangaceira!

Quem Somos Nós?


Replicante Raquel


Ele parecia calmo mas por dentro, é claro, como todos nós ele se roia. Para disfarçar, dizia: Desculpe, não quero teclar. Só venho colar mids. Naquela noite, sonolento, H48MsnCam sentiu algo mais no rastro dos bytes. Virou-se para a relação de nicks cheirando, os poros dilatados, os sentidos exaltados e lá estava ela, sob a SentinelaMS SozinhaNaNoite era esquisita. Encheu na hora os olhos dele. Ele desejou que estivesse ali a quase materialização do que há tanto tempo pedia por trás de todas as suas buscas dissimuladas nos chats, aquilo ardente que com força também rechaçava. Fechou os olhos em sonho e quando os abriu estava tonto. SozinhaNaNoite tinha desaparecido da lista. Na noite seguinte voltou para encontrá-la. De olhos fixos no nick dela, imaginou as voltas quentes que ela faria na cam, o foco da imagem mostraria uma angulação dengosa, obediente ela agarraria o mouse e se entregaria, contra o teclado afastaria um véu, do alto de sua cabeça um penacho louro se rebelaria. Carlos, rápido, pisciano, divorciado, moreno, grudou-se àquela fantasia já sem ar. Na terceira noite viu como era bela. Simples. Despojada. Ele imaginou como seria beijar devagar a sua pele. Engoliu o scotch com gula. Como ela era viva. Como brilhava. A labareda ergueu-se e o inundou. Algumas fagulhas caíram no chão, ele queimou as pontas dos dedos, depois esfregou no dorso da mão, pareceu que estava ensangüentado, ficou exausto e desligou. Procurou nos caminhos dos sonhos de que beduína caravana ela teria importado o seu exótico traje, sêxtuplas anáguas revirantes ao frêmito daquela estação. Sozinha contorcia o ventre negro misterioso. De seu umbigo jorrava um rubi.
No dia seguinte não foi trabalhar. Queria ela! Pensou nela o dia todo, procurou-a, quase contente com aquele seu penoso flagelo constante, a longa noite de insônia e aflição, dessa vez não se deteve enfim para analisar se a alegria que sentia era sagrada ou profana, pura ou pervertida, era alegria e ele gritou, chamando-a Vera. Não conseguiu tocá-la nessa cerimônia de batismo. Mas podia jurar que o que ela usava por baixo era seda.
Na quinta noite ele entrou ofegante na sala, seu coração ansiava selvagemente pelo amor. O que era aquilo que o puxava feito um imã?!! Outra vez tinha deixado de ir trabalhar. Quando a viu, afogou de novo o olhar na cintura dela e sentiu-se negligente e culpado, como poderia ser o grande empresário que queria ser, que devia ser, sabotando assim a rotina cotidiana? Deixando-se arrebatar por uma amizade recente e superficial?? Nem alguém real ela era. Estava louco. Estava muito cansado. Tinha trabalhado demais nos últimos anos, preparado muitas planilhas, sua coluna doía e a mente de tanto esforço talvez fraquejasse um pouco. Lembrou-se do pai sentado impassível à testa da empresa. Seria como ele. Tentou não ficar nervoso. SozinhaNaNoite notou que em vez de amor ele agora a temia. Para se defender puxou rápido para o outro lado todas as saias juntas mal a conexão se firmou. E de vingança deixou entrever pulsante aquela louca nesga laranja. Na sexta tarde H48 também não voltou ao escritório. Abriu pela última vez o laptop e viu como ela era tola. Estava lá. Deu graças por estar com os dias contados no chat e por não pertencer por origem àquela tribo irracional, escandalosa, despenteada. Perdida em mais adornos, saias mais compridas, longos brincos pendurados, colares entrançados que mexia a cada êxtase, H48MsnCam encarou-a friamente e não teve mais dúvidas: SozinhaNaNoite não tinha vindo nunca para o amor, mas unicamente para perdê-lo. Desmanchava-se em deleite, dançava, e quando a midi travou, ela interrompeu também o seu vaivém. H48 começou a estudá-la sério, com sofrida isenção contou de novo aquelas saias, observou que a cor de tudo era agora de uma intensa tonalidade incendiada, como se alguma característica oculta tivesse subitamente amadurecido. Isso terno lhe ardeu nos dedos, ele pensou na dureza da prova, bastante desanimado com a fraqueza da sua determinação. Como eram doces as malhas da afeição! Empertigou-se e sério concluiu: Vera é apenas uma aparição deste mundo ilusório. Uma farsa sem substância própria, um fantasma. Como aliás todos os fenômenos deste mundo virtual. Mas. Pensando bem, já que nada aqui de fato existe, então não há nada a temer! Nesse átimo de segundo H48MsnCam viu como era afortunado por saber: ele mesmo vazio de substância nenhuma! Que felicidade! Meus sentimentos então não importam, pois também não existem!
De repente viu que a imagem dela escureceu. Talvez por mágoa, quem sabe em queixa. Mas o jogo de luz e sombras também não seria uma ilusão? H48 outra vez se confundiu. Não sabia se a espiava ou se a ignorava de vez, por só se tratar de uma quimera transparente e perfumada.
Desligou o laptop, amanhã retornaria ao escritório, tinha enfim apaziguado o gume infame da paixão que o revirava inteiro desde que a vira. Na sétima noite estava mesmo convicto de que nada mais neste mundo virtual mentiroso o poderia abalar. Entrou então pela última vez para colar a midi de Rod Stewart e selar sua libertação. Por ter estado em adoração constante, por só ter vivido para dançar para ele, SozinhaNaNoite tinha exaurido o seu turbilhão interno, despojara-se de suas vestes uma por uma e ali jazia, CumpridaEnua, até que por acaso se desmanchasse.
Depois de colar oito midis, exausto H48 ponderou que talvez já pudesse virar-se e olhar para a lista sem perigo, dizer-lhe adeus sem retorno. Iria embora depressa, esqueceria toda essa loucura, e no dia seguinte retomaria a rotina do escritório. Mas ao pensar que ela estaria ali. A um palmo apenas da sua mão quente. Talvez em saias mais rodadas. Quem sabe um novo véu. Temeu perdê-la. Que algum outro internauta arrebatado ao som da próxima midi a raptasse. Ciumento se descontrolou, se sacudiu e suspirou sua paixão num grande jato que a derrubou. Abriu os olhos faminto decidido a agarrá-la, arrancá-la dali da sala, levá-la consigo só para ele. Mas onde estava ela?? SozinhaNaNoite tinha sumido. A tela tinha travado ou ela se escondia e repetia a brincadeira para provocá-lo?? O coração aos pulos H48 puxou panos, esgarçou nicks, tentando farejar pistas do que voando pudesse ter se desprendido dela. Rodeou salas, percorreu idades, então enroscada num tema inesperado numa sala de um idioma abstruso, H48 a pressentiu. Esperançoso formulou um galanteio, deparou-se mudo com uns destroços murchos. A flor do seu desespero estava morta. H48MsnCam uivou e levantou seu nick ferido da tela, tentou ressuscitá-la com lágrimas de ácida torrente, exalou sopro e beijos de saliva, inconformado com a brevidade daquela existência querida. Por que os guizos de sua amada tinham que ter sido tão reticentes??! Por que não o chamaram ao menos por escárnio para a tortura da separação? Os olhos dela emoldurados por feitiços de tição eram agora janelas pálidas cerradas para sempre, lacradas com esmero, indiferença, pó. Ela para morrer cobrira-se de uma cinza estranha, H48 tentou cobri-la um pouco que fosse, montá-la mesmo que na sombra da princesa linda que fora, para oferecer-lhe uma digna sepultura. Mas suspiros, delírios, saias de Sozinha tudo tinha sido misturado à tela enegrecida e o Sol da manhã, comovido, transformara todos os nicks numa imensa pira solidária. H48MsnCam encolhido não sabia o que fazer, não sabia mais quem era, aquele sumo escuro a lhe escorrer por dentro, como ferrugem e também por dor, ele de uma forma rubra também morria, também nascia, naquela agudeza de instinto meramente descarnado, naquele sofrimento vivo e verdadeiro.
Do Céu dos Simples, na Sala dos Rubis Naturalmente Incandescentes, o ImortalDaPedraPreta e sua amorosa amada ShaktiEscarlate olharam em chamas para outro ponto da Internet, escolhendo outra sala de chat para nela fincar num raio para o inferno e o céu de algum outro ser alguma outra noite, grávida de algum outro corcel de amor esgazeado.
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Imagem: Kiss kiss kiss kiss........by bennystroller..Album: True Music from Budweiser.. Webshots. "Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved."

16 de out. de 2006

Delírio


Bruno Accioly


- ... quem?
- Acorda, cara.
- Que horas... ?
- É cedo. Mas isso não é importante. Nem um pouco, por sinal...
- Que aconteceu?
- “Que aconteceu?”, você me pergunta? Que aconteceu? Vou te contar o que aconteceu. Acordei agora há pouco pra ir mijar, certo? Sabe daquelas minhas famosas mijadas na madrugada. Bom, tava puta sonado e fui até o banheiro no tato mesmo. Aliviei e voltei pra cama...
- E?
- Porra, espera meu. Já chego lá... então, eu tava pronto pra deitar de novo quando notei algo escuro sobre o lençol e resolvi acender a luz só pra verificar, entende? Coisa rápida. Pra desencargo de consciência. Foi aí que o drama começou. O lençol estava manchado, cara. De vermelho... bem escuro. Mas muito manchado, irmão. Eu sabia que iria soltar tinta. Que o corpo iria expelir o excesso. Mas aquilo não era excesso nem fudendo. Você tá me acompanhando? Corri pro banheiro, tirei o filme plástico – que por sinal estava sujo e opaco – e quase fiquei louco. Ou melhor, acho que fiquei louco! Só posso estar delirando. A tatuagem sumiu, cara! Toda ela.
- Como assim?
- Como assim o que? Sumiu, desapareceu, escafedeu-se. Dá pra ver nitidamente a forma do desenho, pois continua inchado, mas a tinta toda... ficou no meu lençol. Até voltei pra olhar novamente e, embora não tão larga, a mancha é profunda. Chegou ao outro lado do colchão. É tinta pra caralho.
- Você só pode estar brincando.
- Pareço estar brincando, porra? Eu ia te ligar a essa hora da manhã só pra te passar um trote? Cara, é algo sinistro, do tipo Wolverine. Sei lá. O corpo expeliu tudo. Igual o adamantium naquele episódio com o Magneto. Tá lembrado. O corpo botou toda a droga da tinta pra fora. Agüentei por três horas doloridas aquela porra de agulha me cutucando... sem falar que gastei uma nota preta. E pra que?
- Velho, isso é um absurdo. Simplesmente irreal. Fica calmo.
- Ficar calmo?
- Deve ser um sonho, irmão. Meu, ou seu. Mas deve ser um sonho.
- Sonho porra nenhuma. È bem real, por sinal.
- Cara, não pode ser verdade.
- Não pode, não é?

Fundo do Poço


Bianca Accioly


Na gota d´água mora a realidade

Sou uma molécula de água e moro no fundo de um poço na encosta da serra. Vivo aqui há alguns anos e não pretendo sair por um bom tempo. Quando decidi que iria morar no campo, planejei bem alguns séculos de minha eternidade.

Morar na cidade desgasta a gente com todo aquele movimento, chove e esquenta o tempo todo, ficamos em muitas no ar parado de tarde quente em engarrafamentos, escorremos pelas calçadas sujas até alagar a rua toda em direção aos bueiros entupidos. Quando o dia está ensolarado e as pessoas de férias, consigo seguir em alguma brisa suave ao longo do lago ao som da música que toca no parque.

O que mais me encanta em ser água é poder passear pelas coisas, fazer parte da vida, como passear por uma árvore sendo sugada do solo pela raiz, subir pelos canais da seiva bruta, ir até a ponta da folha para cruzar um raio de luz e ser jogada dentro de um fruto maduro. O fruto pode ser comido e posso assim conhecer algum animal por dentro, passear por seus pensamentos ou estar em cinemas dentro das células oculares.

Durante muito tempo fiquei presa em uma geleira na costa sul, vi o céu se transformar muitas vezes, fiquei dentro de uma garrafa de vinho perdida no fundo do oceano, em um frasco de esmalte vencido, na chapa quente de lanchonete de estrada, pirulito de criança enterrado, e muitos outros lugares. Acredito ter visto a vida de várias maneiras, ter me transformado em muitas coisas a cada tempo. Percorrendo a humanidade e seguindo meu caminho infinito.

Tudo isso mudou quando conheci uma gota que havia morado num lençol freático pelos lados de Minas. Quando soube de um lugar assim preservado, segui viagem rumo as minhas férias. Evaporei no primeiro calorão, condensei dentro de um Jeep, e fui gotejar lá perto da nascente do rio. Segui via expressa até as corredeiras e durante a noite pousei no galho da plantinha até chegar ao solo e adentrar, lentamente, seguindo o movimento da terra.

Acordei no fundo de um poço velho no quintal de uma família pequena, onde as outras moléculas são muito tranqüilas, não se preocupam com nada. A maioria já mora aqui há muito tempo, pois o clima é mais fechado, longe de tudo, tudo ali é conhecido. Um balde desce pela corda e carrega a turma lá pra cima, onde viram um monte de coisas pra manter a vida por ali, e retornam pelas paredes depois de um tempo juntando-se novamente aqui em baixo.

Quando o balde baixa, eu dou um jeito de não ir, e vou ficando aqui no fundo bem tranqüila, e pretendo ficar por aqui mais algum tempo. Já fiquei sabendo que daqui uns séculos seremos todas canalizadas. Espero não ser perturbada. Não quero ter que me juntar à outras substâncias para acabar com esses bichos que querem mandar na gente. Eu já passei por seus pensamentos e sei como funcionam, as realidades que criam...

Vida Cinza


Fê Farah


Cores fogem de nossos olhos
E eles da luz
Medo...
VIVER ASSIM É UMA OPÇÃO!
Viver assim
É
Morrer em carne.
Em osso.
Inexplicável, intocável e inesperado...
surpresa que mistura
Loucura que ameniza loucura
Borboleta caminhando
Criança trabalhando
Sorriso abraçando
Detalhe escondido
Alegria em demasia
Choro banido

O Fantasma da Psicose


Pedro Rodrigues


Eu nunca me vesti como minha mãe e matei minhas namoradas.

Ao menos não os dois assim, juntos.
Nesta ordem...

Não é este o ponto, e o ponto é este, sabe, eu tenho alguma dificuldade em manter uma direção, um raciocínio.
Um objetivo.
De manter, enfim...

O que eu queria contar a vocês é sobre o mundo colorido.
Tão bonito um mundo colorido, não é? Vocês têm um?
Pois deveriam. Eu piso as ruas cinzentas, troco palavras pardas com pessoas quase evanescidas. Todo santo cinza dia.
Não é a cidade, vocês já vão pensar. Não, andei as mais verdejantes paragens, fiz minha casa em quadros da obra espetacular. Reconheci e até percebi a magia divina da criação.
De que me serve?
Os marrecos cintilantes grasnando, as araras, os tucanos, vizinhos admiráveis.
Mas quem se admira? Tudo tão... cinza...
Me importo, tentei gostar. Fingi, menti, e quase me convenci de que achava graça.

Porque, sabem... Vou voltar ao ponto, calma, chegamos lá. Sabem, eu vejo através. Deste cinza irreal.
É só uma convenção, não é?
Você não está aí, estas palavras não estão aqui.
Eu sim.
Faz sentido, não faz? Percebem o porque do mundo colorido?
Como posso ter certeza de que todos vocês existem?
Mesmo que existam, o que me importa?
Não me encham a paciência, para que preciso das suas silenciosas vociferações apardeadas?

Me perdoem, procuro não me exaltar. Até porque, de que adianta?

Tudo tão chato, tão sem graça, tão normal.
É por isso que não me esqueço do meu mundo colorido. Lá tudo é tão... certo... As coisas fazem sentido, meus amigos são alegres e nos entendemos. Eles sabem o que penso e eu também sei, somos uma verdadeira família. Somos felizes e tudo é bom, do jeito que deve ser, a vida encontra sentido e o sofrimento, justificação.
E então não é este o real?

Eu falava, contava, mas reagiam como se não me entendessem. E eu estava falando do mundo, da vida, da alegria! Afastaram-se, sentiram pena, ficaram bravos, então não falo mais.

Eu tranquei a porta do meu mundo colorido e hoje vivo nesta pasmacera preta, branca e sépia.
Se não, me dão choques. Mas é para o meu próprio bem. O mundo colorido, a alegria é má, não se pode ver o brilho.
Eu tenho que ser como os outros, viver o mesmo seu mundo cinza. É melhor assim, eu sei que é.
Eu sei.

Por isso tranquei a porta de meu mundo colorido e escondi a chave.

Mas lembro onde ela está.

19 de set. de 2006

Retroceder Nunca, Render-se Jamais


Haruki Kume


Ele: Acho que estamos quase lá, né?
Ela: E eu é que sei?
Ele: Como assim? Que eu me lembre, estamos indo para a casa da SUA amiga.
Ela: E que eu me lembre, eu disse para você pegar a entrada 38, lááááá atrás.
Ele: Olha, eu já viajei muito por essas estradas, já estive em Ilhabela várias vezes, e nunca tive que pegar nenhuma entrada 38 pra chegar lá.
Ela: Tá, então faz o seu caminho.
Ele: Amor, não precisa se irritar, estamos aqui pra curtir um fim-de-semana romântico, só nós dois, naquela casa linda à beira-mar...
Ela: Eu não tô irritada.
Ele: Ta sim.
Ela: Não tô! Que saco!
Ele: Viu?
Ela: ...
Ele: Tá bom, tá bom. Mas sério, tenho quase certeza que a gente tá chegando. Vou até abrir a janela pra você sentir a brisa do...
Ela: Fecha, fecha!!! Droga, meu cabelo! Por que você tinha que abrir essa droga de janela?!?!
Ele: Eu já disse, pra você sentir a brisa de Ilhabela...
Ela: Que Ilhabela?
Ele: Como assim? Já estamos em Ilhabela!
Ela: Já estamos em Ilhabela?
Ele: Tenho certeza!
Ela: Engraçado...
Ele: O que foi?
Ela: Eu podia jurar que a gente precisava usar uma balsa pra chegar em Ilhabela...
Ele: Será? Acho que não, na verdade...
Ela: É CLARO QUE PRECISAMOS DA BALSA!!!
Ele: Calma aí! Muita calma nessa hora! Há quanto tempo você não vai pra Ilhabela?
Ela: Sei lá, 6 meses, eu acho.
Ele: Pois é, sabe em quanto tempo é possível construir uma ponte?
Ela: Eu não to acreditando! Você não tá falando sério...
Ele: É possível, oras! Você não viu aquela ponte na Marginal? Acho que não levou nem 3 meses.
Ela: Chega. Vamos parar e perguntar onde estamos!
Ele: Pra quê?
Ela: PRA QUÊ?!?!
Ele: Olha, eu tenho uma técnica infalível pra saber onde estamos.
Ela: É?
Ele: Procura uma imobiliária.
Ela: ???
Ele: As imobiliárias do litoral sempre têm o nome da praia no próprio nome. Tipo “Imobiliária Maresias”, ou “Imobiliária Pitangueiras”.
Ela: Essa é a sua técnica infalível?
Ele: Procura aí a imobiliária. Você olha do seu lado, que eu olho do meu.
Ela: Dai-me paciência, senhor...
Ele: E aí?
Ela: Peraí, tem uma ali... Imobiliária Itamambuca...
Ele: Itamambuca não é aquela praia logo antes da praia onde fica a sua amiga?
Ela: Você quer parar? Nós não estamos em Ilhabela!!!
Ele: Eu tenho quase certeza que é Itamambuca...
Ela: Nós não vimos nenhuma BALSA!!!!
Ele: Olha, tem outra imobiliária ali...
Ela: Imobiliária... Ubatuba! Imobiliária Ubatuba!!!!
Ele: ...
Ela: E agora, hein?
Ele: ...
Ela: Ficou sem palavras né? Admite agora que errou o caminho?
Ele: Eu estava pensando...
Ela: Sim?
Ele: Por que alguém chama uma imobiliária que fica em Ilhabela de “Imobiliária Ubatuba”? Amor, o que você está... amor, não abre a porta assim, o seu cabelo e... espera, não pula, o caminh...

16 de set. de 2006

Atalhos


Ben Iamin


“Siga em frente”, dizia a placa amarelada, lavrada de balas.
E ele obedeceu, já sentindo o sapato machucar os pés com força.
Tinha encontrado a estrada por indicação do velho da mercearia que lhe vendera seu primeiro peão. Infelizmente a orientação não tinha sido lá muito clara, ou o velho realmente não sabia onde ficava o lugar. E ele só conseguiu chegar até ali.
Quando o sol já lhe cozinhava o couro cabeludo, ele percebeu na imagem trêmula daquele calor, um ponto preto à distância. Um ponto preto que lentamente foi se tornando a primeira mulher com quem fudeu.
Sorrindo, com um vestido talvez um pouco curto demais pra conter o esplendor de suas coxas, a volúpia do seu decote, ela apontou um aparente atalho no meio do canavial da sua infância.
E ele hesitou. Não tinha certeza se gostaria de voltar à fazenda de seu avô, à irônica asma que algemara a sua diversão de criança da cidade no interior.
Mesmo assim, dirigiu-se até a entrada. Mas não sem antes tirar os sapatos e sentir aquela inconfundível consistência do solo de massapê.
Foi ouvindo o coro do berro dos meninos que ele adentrou o canavial, decidido.
E encontrou, no meio da plantação, o filho que nunca teria.
Quando segurou a criança nos braços, admirado com a semelhança, percebeu que não sabia onde estava.
Encontrava-se, enfim, irremediavelmente perdido dentro de si mesmo.

(Quadro "O canavial" - NELY AFFONSO RODEGHIERO)

15 de set. de 2006

Schizofagia


Pedro Rodrigues


60 trilhões de células auto-conscientes gritando “Eu quero”.
Micro-explosões químicas nas extremidades de cada neurônio, não passa um passo que não seja aprovado em consenso.
Doenças ribossomáticas em velhas veias capilares.
As possibilidades existindo concretamente como impulsos omnidirecionais; para frente não me exime de para trás – buscando alcançar todos os lados ao mesmo tempo, de meu centro incerto não atinjo sequer a periferia de minha epiderme.
Eximido de contato nas fronteiras de meu corpo, comunico-me de mim a mim, a informação transmitida em velocidades subatômicas ecoa e retorna de organela em organela.
A tempestade interna impede qualquer brisa de aproximar-se.
Estou saturado e já me acumulo em sedimentos. Não me misturo, decanto.
De canto.
Num canto, de cada canto de mim.
Cacofania ufanista.
Fã e canto; um universo solitário auto-envolvente, auto-existente, inconsciente, auto-conseqüente. Me criei às minhas imagens insemelhanças.
Sacudidelas no saco de células – alguém me desperta, abro o olho – luz transitando por nervos óticos – vibrações em meu tímpano, irreconhecíveis comunicações –
Desespero em alguém, de fora de mim, não me entendem, me vêm.
Me levam a andar.
Para mim...
Tanto faz.

Bushidô

Bruno Accioly


Embora empregasse uma força sobre-humana para não demonstrar a dor que sentia, seus olhos o traiam produzindo cascatas de lágrimas, em uma tentativa frustrada em diluir o mar de sangue que escorria por dentre o grosso piso de palha. No que o corpo pendia para o lado, concentrava a pouca força remanescente nas mãos machucadas, firmemente agarradas ao cabo da espada curta.

Procurava esvaziar a mente com o emprego de técnicas de meditação, mas uma música antiga tocada em harpa, pela sua avó quando ainda viva, ecoava longe em um tom constante. A neve espessa cobria as cerejeiras e os jardins suspensos de pedra, e sua brancura desgastada combinava com o arranjo de madeira negra que decorava a sala.

Sentia a lâmina fria transpor o quimono em seu dorso, enquanto uma pequena corrente de ar percorreria toda sua extensão e lhe ressecava as pontas dos dedos. Hiroshi inflou com dificuldade ambos os pulmões e, assim como seu pai antes dele, a conduziu com destreza milenar ao outro lado do abdômen, rasgando-o por completo e expondo, aos presentes à cerimônia, sua vida em detalhes; pura.

Dentes lascados rasgaram com ódio o lábio inferior, que sangrava para dentro da boca; porém, mantendo-a selada. Hiroshi não emitira som algum. Seu primo, posicionado logo atrás com a enorme espada sobre a cabeça, sentiu-se orgulhoso.

Enquanto tombava para frente, incapaz de manter retesados os músculos da coluna, Hiroshi observou sua esposa no fundo da sala – imóvel – e sorriu. A honra da família Saito havia sido preservada e seus membros poderiam, novamente, caminhar pelas ruas da pequena vila com a cabeça erguida; livres de falsas acusações.

Era fim do inverno no vale sob a montanha e o funeral chamou atenção, até mesmo, do senhor das terras. Sua esposa vestia seda pela última vez. Na primavera seguinte, o Shogunato se desfazia.

(Bushidô, que em japonês significa "o caminho do guerreiro", era um código de honra não-escrito e um modo de vida para os samurais (bushi), que fornecia parâmetros para esse guerreiro viver e morrer com honra.)

Segura minha mão

Paula Bonnano


Quero que me conheça.
Pego sua mão e dirijo seu caminho.
Vamos lentamente entre paisagens suaves.
Por vezes você me olha apreensivo, quase com medo de seguir em frente.
Eis, então, que alcanço seu olhar e explico, sem qualquer palavra, que você deve confiar em mim, pois não lhe farei mal algum.
Continuamos.
E agora você segura mais forte sua mão entre as minhas.
Carrego você como se fosse frágil.
Na realidade é, mas não tem coragem de dizer (ou assumir).
E não precisa.
Percebo, acolho e encerro você dentro do meu mundo.
Sua mão fica mais leve entre as minhas.
Não preciso mais olhar para trás.
Seus passos ficam mais confiantes depois dos meus.
E a paisagem começa a se concretizar.
Você já pode ver um pouco mais de mim.
O presente com suas estampas.
Fatos, sensações.
O passado com suas lembranças.
Sublimes, tortuosas.
Tudo dicotomizado e em harmonia.
Um inteiro com duas faces.
Continuo segurando suas mãos.
Levo-o para o futuro.
Sem antecipações, apenas repleto de vontades.
E vamos.
Você ao meu lado
Por esse caminho sem fim,
cheio de escolhas
e inteiramente meu...
ou melhor:
nosso.

Caminhos

Lia Noronha


Era uma espécie de trilha que deveria ser seguida rumo ao desconhecido
sem paragem sem ter ao menos um pouso que amortecesse o cansaço da viagem.
Idas e voltas com obstáculos imaginários e outros tantos reais.
Perdida entre os artífices que o desejo consegue permanentemente construir.
Querendo muito encontrar o amor que se esconde como tesouro : dentro dela mesma.

Parte 4

Bianca Accioly


As poucas nuvens foram tomando corpo e o vento mudou de direção. As folhas secas corriam pelo corredor de vento fazendo acrobacias num balé aéreo. A correnteza do rio parecia ter aumentado um pouco, indicando que a chuva já estava forte pros lados da nascente. Nos apressamos para ir embora pois o caminho era um pouco longo.
Ao chegarmos a clareira notamos que o cavalo havia se desprendido e tomado o rumo de volta. Estava com as pernas inchadas e não podia andar direito. Ângelo saiu desesperado pela trilha com esperanças de alcançar o fugitivo. Me vi sozinha numa caminhada longa que não conseguia percorrer, joguei o pano em volta da cabeça e fui andando devagar tomando meu mate tranqüilamente.
Quando a chuva chegou, já estava forte e pesada. Como não era a primeira nem seria a última que tomaria, segui a caminhada. Na parte mais fechada do caminho havia uma árvore caída, impedindo a passagem. Não tinha forças para pulá-la, então tive que me sentar e esperar Ângelo voltar.
As horas iam passando juntamente com a chuva, e Ângelo não retornava. Comecei a ficar com fome, e nessa altura com medo de onça ou cachorro do mato.
Com o sol já alto, sem dormir direito e desde cedo fora de casa, comecei a me desesperar. As pernas já estavam mais descansadas e resolvi tentar pular a árvore, pois gritar ou chorar seria em vão. Escalei a árvore com muito custo e continuei pela trilha.
Cheguei até a casa mais próxima, que era do compadre Nho Tito e peguei um cavalo emprestado. Já em casa, soltei o bichano que se bandeou de volta. Adentrei minha casa na esperança de encontrar o rapaz. Vasculhei por todos os cantos, na casa dele, no celeiro, na horta...e nada.
Estava muito cansada e faminta. Fiz um almoço rápido e deitei na rede da varanda na esperança de rever meu menino. Adormeci no mesmo instante, tive sonhos tão reais que não conseguia distingui-los da verdade. Despertei com a luz da lua cheia, os grilos cantando e vaga-lumes florindo o campo pardo.
Na estrada que levava à vila apareceu um homem montado, levantei-me afoita de felicidade, só podia ser ele. Quanto mais se aproximava, mais notava que estava enganada. O homem chegou a porteira e pude reconhecer meu compadre Nhô Tito carregando uma expressão preocupada. Tive palpitações que a muito não tinha, as pernas me faltaram e a vista escureceu. Antes de cair no chão vi Nhô Tito correndo em minha direção.
Não cheguei nem a abrir os olhos e senti uma pontada forte no braço. Levantei num grito afobado, reconheci o doutor Luiz com aquele sorriso estranho habitual.
- A minha menina está se sentindo melhor ?
Alarguei o sorriso por causa da “menina” mas senti outra pontada, agora na cabeça. Levei a mão até ela e senti meus cabelos molhados e uma parte muito dolorida.
- Sangue! Meu Deus, o que aconteceu comigo ?
Por algum tempo fiquei olhando os dois atônitos sem conseguir me lembrar de nada. Nhô Tito me explicou que eu havia caído e que veio me ver pois ficou preocupado em me ver saindo do mato sozinha lá pela hora do almoço. Sua mulher o mandou até aqui para saber se estava tudo bem comigo, achavam que eu já estava muito velha e um pouco maluca. Foram educados nessa parte, mas deu pra ler nos olhos deles.
Eu me sentia cada vez mais zonza, parecia que havia vivido um mês só nesse dia. Não conseguia distinguir o que era dia e o que era sonho. Fui levada até meu quarto, deitada na cama, tomei um pouco de sopa que Nhô Tito havia trazido e dormi novamente.
Fiquei cinco meses sem notícias do garoto. Minhas pernas ainda estavam debilitadas devido aquela caminhada. Eu ia me recuperando lentamente, passava as noites acordadas pensando em muitas possibilidades, apesar das perguntas desconfiadas das pessoas, descartei a possibilidade de uma emboscada.
Pensei em ir para a capital em busca de pistas, até que chegou um cartão endereçado à casa abandonada da frente sem nenhuma mensagem. O cartão veio postado de São Paulo, com a imagem do Museu do MASP, e a data do dia do desaparecimento de Ângelo.

Caminhos

Replicante Raquel

Ela desvencilhou-se dele a muito custo, deitou-se na cama e riu alto do seu ar sério, meio brava apertou pra trás o umbigo fazendo uma careta, ele puxou para cima o zíper do jeans muito justo, torcendo para enganchar no piercing e eles recomeçarem tudo aquilo, ela sempre o provocava com aqueles renitentes 9 quilos a mais que os doces perpetuavam na sua carne fogosa, gostava de guardar lá no fundo a lembrança grudenta das suas mãos viajando por seu corpo a noite toda e a levaria assim clandestina, inquietante, no forro da calcinha já um pouco engomada. Enfiou as botas mordendo os lábios, antes de saírem para o World Trade Center esmagou com prazer o corpo esmirrado de 5 formigas que deixavam o resto do bolo-mousse de chocolate que tinha comprado na doceira japonesa para comemorarem o 44o. aniversário de seu insólito e adorado marido, tinham chegado de Amsterdan há 2 dias, voltavam para o trabalho sem saber que nunca, nunca mais se beijariam. Mal tinham entrado no prédio e elas já começavam a descer, as formigas, intuitivas e vermelhas caminhavam depressa, nervosas, quase histéricas, desordenadas numa fila irregular, pressentiam o estrondo talvez e começaram a pular as escadas do 64o. andar para o 32o. se atropelando, quando o primeiro avião atingiu a primeira Torre elas foram carbonizadas no 37o. e não chegaram a esbarrar em Loreta Lee. Antes de saber da morte da filha caçula, Sarah Cohen ligou a televisão e caiu perplexa no sofá. O que era aquilo??? A Terceira Guerra Mundial??? Dali a um minuto detonariam a última bomba atômica como no filme “O Planeta dos Macacos”?? Nova York acabaria??? Trêmula, desesperada, telefonou aos gritos para a filha mais velha na Jamaica suplicando-lhe perdão. Cinco minutos depois Nova Iorque não tinha acabado. Sarah suspirou aliviada, logo depois bufou e arrependeu-se de ter sido piegas, recompôs-se, não admitiria que a filha provocasse a família com aquele deboche intolerável do romance com o cantor negro!! Discou novamente, para a Jamaica, vomitou toda a sua aspereza e deserdou a filha .Ficou sentada a manhã inteira no sofá arquitetando a vingança suprema contra o marido aparvalhado. Antes do meio-dia, 6 formigas decididas desceram da torta de maçãs à sua frente, atravessaram o lavabo, mergulharam nos restos sujos de papel higiênico na cesta abafada e voltaram para a torta. Sarah Cohen nem percebeu. Assim que soube da morte da filha sardenta no Wolrd Trade Center, James Cohen resolveu ser um dos médicos sem fronteira no Iraque, e também depois que viu aquele muçulmano esquálido jogado ali na calçada, escancarando confissões à desconhecida de suéter rosa que o amparava na poça de sangue, ele cantava, chorava e dizia que adorava cantar, Sempre adorei, não sei se canto ou se morro, a garganta de James Cohen travou de dor, o homem morria e a canção de ninar ancestral brotava como um bálsamo trágico de suas vísceras apunhaladas, lágrimas gordas escorriam, eram feitas de gergelim e sal grosso, Mohamed riu, seu canto foi mel sobre a tristeza da vida interrompida; e no Iraque, talvez já sabendo do destino do perfumista Mohamed em Nova Iorque, outras formigas tinham subido numa fila ordenada, caminhavam devagar e resolutas, quase más, invadiram o andar de cima da casa da família e atormentavam a avó chorosa no quarto, circundavam sua cama emoldurada daquela tristeza antiga de tantas perdas. Em Nova Iorque, James Cohen afastou-se um pouco, esbarrou num bombeiro, urrou na rua estraçalhada como há anos precisava fazer. Desgraçados!!!!!! Nós e eles!!! Seu grito animal fez outras formigas baldias acocorarem-se nuns escombros meio assustadas perto daquela flor. O Iraque não tinha acabado. Muitas vezes James Cohen tinha ficado na dúvida, não sabia se vivia ou se morria, se ficava em Nova Iorque ou se partia para o outro lado da ponte, da cidade, do mundo, se deixava de vez a esposa insuportável, mas matar formigas nunca tinha matado nem mataria, podia até ser médico de formigas, pensou, e a lembrança de Salomé comoveu seu coração devastado. Sentou-se no chão ao lado da poça em que Mohamed se esvaía e rabiscou depressa um bilhete, Salomé já estava de volta à praia natal perto de Guantânamo, desfazia a mala ao ouvir a notícia do atentado pelo rádio desempoeirou o livro de poemas de Ernesto Cardenal e abriu-o ao acaso, encontrou a ode aos antigos toltecas que fundavam cidades cantando, se o mundo acabasse dali a alguns momentos ela morreria feliz e cantando, viu as formigas sob a mesa, caminhavam engraçadas, numa fila saltitante, a casa tinha ficado tantos meses fechada mas na solidão os rastros de açúcar se esconderam para surpreendê-la na volta, o rastro das pequenas peregrinas formou um coração na camada de pó, teriam passado por todas as dores planetárias antes de inscreverem sob a mesa aquele presságio e se aninharem sonolentas no seu lírico pote de mascavo bruto.
Salomé conectou o laptop e escreveu um breve e-mail para James Cohen, o médico norte-americano que tinha conhecido há poucos dias no congresso em Nova Iorque e que não saía de sua cabeça, de seu coração, de seu plexo solar: “O mundo está acabando, Dr Cohen. Gostaria de ir para Shangrilá comigo?”


imagem: (Rosy Road). keliz, Porto Rico. http://www.glitter-graphics.com/


Em memória de Loreta e Mohamed.

Trancado


Fê Farah


Torturando o tempo
Procurando a tampa
Triplicando a tralha
Temperando o vento
No teto de tule
Uma telha e uma tranca
No túnel um truque
Uma tulipa torta
Que trilha o troço
Trepa por troco
Troca o trilho
Destroça o treco
Pendura o trocadilho
Meu trilho, trilho
Meu troço, torturo
Minha telha, penduro
A tulipa, troco
No túnel, trepo.

14 de ago. de 2006

O Universo em uma casca de cada um de nós.


Bruno Accioly


‘Meu objetivo é simples. É o entendimento completo do universo, porque ele é como é e o porque da sua existência.’

- Grande merda! - pensou Fausto, enquanto ouvia de seu pai citações do famoso físico inglês Stephen Hawking; com quem tinha em comum apenas a rara doença degenerativa: Esclerose Lateral Amiotrófica. Foi uma idéia de sua mãe, no momento em que ficou sabendo dessa semelhança, tentar motivar o filho a continuar vivendo, em encontrar algum objetivo pra sua vida - mesmo que, teoricamente, tão curta. Hawking buscava, através de suas pesquisas, deixar como legado algo útil para a humanidade. Fausto repetira duas vezes a oitava série.

Diferentemente do professor lucasiano da Universidade de Cambridge, os sintomas da doença, no caso de Fausto, foram extremamente agressivos, debilitando-o em menos de dois anos; e sua família não tinha dinheiro pra comprar uma cadeira de rodas, quiçá um sistema computadorizado que permitisse com que ele se locomovesse e se comunicasse através de comandos gerados pelos movimentos de seus globos oculares. Fausto tornara-se uma ilha para si mesmo.

Máquinas filtravam seu sangue, processavam sua alimentação e eliminavam os subprodutos não utilizados. Os únicos órgãos ainda em funcionamento eram o pulmão, o coração e o cérebro.

Fausto pensava em Janete, no cheiro das rosas e em alguns textos de Clarice Linspector. O tempo passava e o desespero da doença e da solidão se transformou em raiva, depois em pânico, tristeza profunda, até pousar na forma de uma amarga indiferença. Talvez tivesse mais 2 meses de vida, pensava. Um pulmão já havia falhado, e o outro mostrava fortes sinais de desistência.

Certa noite, lamentou-se por ser burro. Stephen era um gênio; talvez, por esse motivo, ainda estivesse vivo depois de quarenta anos doente, e firme na incansável busca por uma solução aos mistérios da vida e do universo. Fausto não chegaria a três, e mal conseguia piscar.

Quando seu coração parou pela primeira vez, os médicos despenderam um esforço gigantesco para ressuscitá-lo, ajudados pelas orações de seus familiares. Voltou à vida e agüentou por mais sete dias, antes do segundo infarto; dessa vez, fatal!

Durante essa semana, chorou todas as noites, querendo que a doença e todo o resto explodisse. Que o universo inteiro explodisse; até não sobrar mais nada. Como um Big-Bang invertido (coincidentemente, teoria criada por Hawking). Mas durante um desses seus acessos de frustração – imperceptíveis a qualquer um, pois nem lágrimas seu corpo era capaz de produzir – se atentou ao carinho e a dedicação com que seus pais cuidavam dele; todo esse tempo. Revezavam em turnos limpando-o, lendo livros e notícias de jornal, conversando sobre os episódios das novelas. Ambos fortes e saudáveis, mas presos na mesma ilha do filho, em solidariedade. E em amor.

Seu universo podia ser minúsculo, quase sem massa ou influência na força gravitacional; mas pelo menos, era óbvio o motivo de sua existência.

13 de ago. de 2006

Aprisionada


Ro Druhens


Primeiro foram os olhos que negros eram como negras foram todas as noites em que vagou ao encontro deles e negros também o eram os cabelos novelos de quimeras prontos pra tecer todos os delírios e grego era o nariz como grega seria a história que a boca rasgada como se fora a navalha deixava escorrer em disfarçados sorrisos.

E os ombros eram sólidos e os braços eram longos e as mãos eram despóticas e o tronco era carvalho e as pernas raízes e os pés não eram foram pés de ir embora.

Com o vidro do porta-retrato tatuou no pulso o nome dele. Com o aço da moldura perfurou o coração. Com os dentes rasgou a foto e engoliu.

A Vida a engoliu, finalmente liberta.

Todo Dia


Alexandre Abud


Há 25 anos, a mesma coisa. O mesmo horário gravado no mesmo despertador. Os chinelos na mesma posição. O banho e a barba ao som do mesmo rádio de pilha AM, sintonizado na mesma rádio. No mesmo trabalho a mesma rotina. Chegar na repartição pública, pendurar o terno na mesma cadeira. A mesma ordem dos papéis, os mesmo carimbos, a mesma coisa. Na volta para casa, o mesmo caminho todos os dias, no velho fusca comprado zero através de um crediário de prestações fixas, idênticas. O sofá puído em seu lugar. Todos os telejornais, todos os dias. O mesmo pijama, o mesmo beijo de boa noite na mesma mulher e o mesmo sono tranqüilo. Os imbecis dormem bem. A vida seguia assim até que numa atípica segunda-feira a polia do cansado motor do fusca, exaurida pela mesma rotina de tantos anos, cedeu, partiu-se e fez com que nosso herói, pela primeira vez em décadas tivesse um imprevisto. Atordoado desceu do carro e andou pela rua a esmo, procurando uma oficina. Os imbecis, apesar de dormirem bem, perdem-se diante do inusitado. Notou que estava perto de casa e lembrou-se que naquela gaveta onde todas as ferramentas ficavam precisamente organizadas como numa mesa cirúrgica havia uma correia reserva. Decidiu ir até lá, buscar a correia e na volta acharia um mecânico. Os imbecis não têm instintos. Nas desconhecidas ruas do bairro notou, com espanto, que havia frondosas árvores, pouca gente e cheiro de jantar sendo preparado nas casas iluminadas. Irritou-se por ter passado do tradicional horário da janta, do telejornal e do beijo de boa-noite. Os imbecis não entendem o destino. Quase não percebe um casal dentro de um carro parado sob uma imensa figueira cuja rotina provavelmente era mais monótona do que a dele. Os imbecis não conhecem seus sentimentos. Espantou-se com o frenesi que tomava conta do carro e sem conhecer exatamente a razão, resolveu parar e observar escondido sob a mesma sombra. Notou que o sexo era selvagem e maravilhou-se. Notou também enorme semelhança entre a mulher do carro e sua esposa. Demorou até certificar-se de que, de fato, era ela. Os imbecis enxergam mal aquilo que não querem ver. Neste momento a cela se abriu e com ela foram libertados sentimentos desconhecidos. Imediatamente uma inédita ereção. Aproximou-se do carro com olhos de fúria até então jamais experimentados. Expulsou com uma voz que não era dele o rapaz que há pouco possuía sua amada. Estuprou-a com violência animal, ali mesmo, naquele mesmo banco da frente, sob a mesma sombra. Arrancou-lhe os dentes com uma força que não sabia existir e caminhou rua acima com passos firmes, peito estufado e cabeça erguida. Viu coisas sob ângulos nunca vistos. Decidiu prosseguir e experimentar até o fim a força da fúria que o tomava. Entrou no primeiro boteco, tomou uma pinga, arrumou uma briga dos diabos com um pedreiro desempregado, armado e embriagado. Morreu livre e feliz, afinal, não era mais um imbecil.

Nó de Marinheiro


Ben Iamin


Juntos, assim, na cama, não posso deixar de me imaginar como o personagem daquele filme que você tanto ama.
“Estou justamente aonde eu gostaria de estar”.
Vendo você assim, coladinha ao meu rosto, me dá uma vontadinha de morrer....
Agora.
Bom demais saber que somos só nós dois.
Nada de família, nada de comida, nada de emprego. Nada de nada. Tudo de nós. Quem precisa de mais?
Bom te olhar. Bom saber que você vai estar sempre aqui, pertinho, juntinho, me vendo dormir, me vendo acordar, me vendo tomar banho, me vendo cagar.
A gente perto. Um?
Adoro quando você aperta os olhos assim e me diz que anda com preguiça de dormir. E me chama pra cama, alisando o lençol.
Tô indo, vou indo.
Amo quando você me toma o celular e desliga na cara dos meus amigos.
Quando manda a minha mãe tomar no cu.
Quando vasculha meus emails.
Quando diz que eu não estou.
Quando me bate, arranha e puxa os cabelos ameaçando se matar. Ameaçando me matar.
Bom saber que somos sós. Nós dois.

Aprisionado


Replicante Raquel

No alto da montanha foi o açoite do vento. Éramos pequenos como gafanhotos que não premeditam com ruindade o fracasso de nenhuma safra. Por isso às vezes nos perdôo no alto da montanha.
De lá eu poderia olhar o mar. Tinha subido para a solidão e para o que o silêncio quisesse me dar, uns pressentidos ferozes frutos. Subi para ficar entre as árvores. A foice da Lua encontrou o lago por seu flanco oculto aberto na noite. Em volta de nós macios e solenes pisavam gravetos casais leais de caranguejos e aranhas.
Andavam assim nessa época, aos pares, e em outras? Como se desgarrariam? Parceiros nos tornamos. A Natureza tudo abarca e Jó olhava. Vivíamos os dois a mesma estação crua dos bichos. Jó olhava e os astros eram todos uma constelação de assédios. Jó começava a amassar de longe com o olhar o meu couro devagar e fundo como se eu fosse a vaca, eu não podia rir nem falar, era Vaca Amarela, mas Jó não impediu o meu grito. Desceu pelos fios brilhando cravejados carrapatos antigos. Desfazia nós, ressaca de brisa, laço de grama, vertigem. Eu quase sempre despenteada porque adormecia e vinham as formigas. Jó dava um jeito final e chamava para a mesa.
Lá dentro deslizando por tudo o seu olhar era um navio, boiava por trás da xícara à esquerda da garrafa térmica por cima do pão esticava a sua mão cheia, despencava a testa e tudo inundava a tristeza do meu bem. Jó sangrando era mais alto que as árvores, mais feroz que onças, mais manso que os bagaços rendidos no terreiro para o trabalho do Sol. Levantava e varria, varrer podia. Barata morta, mosquito, grão de arroz e de feijão, qualquer poeira, resistentes quimeras. Quando nem precisava Jó também varria. Fazíamos tanto silêncio que qualquer cisco caído era trovão. Nosso caminho foi esse, taquara e bambu, coisa aflita triturada no mato. Ouriço das pedras nosso querer e a alegria de ter sido mordida por suas formigas na encosta íngreme onde ninguém nos ensinou os perigos do amor.
Eterno e frouxo o seu cerco de olhar. Para eu não agüentar e falar. Menos que frase. Não precisava ser palavra, som que avizinhasse cercanias murmurando eu ia perder. Perderíamos ambos nosso mútuo ardor constante. Vaca Amarela. Quem falar primeiro perde todo o encanto dela.
Da montanha Jó olhou a cidade, encheu os olhos de neón. Mas antes foi aquilo. Antes foi tudo e nada, brincadeira, coisa alegre, paraíso e perdição, Jó começou com a vaca porque éramos gafanhotos. Continuou com a vaca para eu não poder me explicar, sabia o suplício que era, fazia tudo de propósito, caso tramado. Já tinha se esquecido das rusgas da tarde, mas sabia como me martirizar me calando. Decidiu então: Agora é Vaca Amarela. Quem falar primeiro... Levantou e varreu. Mu. Mu. Mu. Mu liberta. Varrer podia. Varrer curava. Varrer varria.
Varria varria varria. Voltava quase nunca redimido ao centro do silêncio onde qualquer som foi caos, desastre, um grampo meu sinistro sinal e derrocada de que antes do início dos tempos eu sempre louca me descabelava por ele. Tudo ele louco a puxar para o seu lado, tudo o que ele queria era pensar coisas assim de mim e eu não poder me defender mentindo que não. Ouriço das pedras o que ele foi, tentando me arrancar rumores.
Já tinha passado o comichão. Não estava mais inchado. Não estava mais vermelho. E de cada unha ia brotar um pé de salsa.
Jô já tinha sofrido bastante. Provoquei então Vai, Jó. Mostra tua língua prá Deus, que te priva.
Jó só riu. Não se vingou. Não me mandou raspar a panela. Pôs mais tarde uma toalha em meus ombros. Agora vamos brincar de outra coisa, falou. E começou.

O amor foi um túnel escuro até Jó chegar com o pente.
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(Imagem: Scarab Necklace..by nancyem1983 ..Album: Around The House Art...."Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved.)"

Aprisionado


Ricardo Mello


Na adolescência aprendeu a se afastar do espelho. No Maximo uma olhada no cabelo, de esguio. Jamais olho no olho.

Sua fraca auto-estima rompia-lhe os vasos quando exposta.

Se por um instante contemplasse a verdade que o olho no olho transgride, uma armadura se formava, franzindo vincos, enrugando a fronte.

Mas agora não havia jeito. O elevador tinha espelhos pelos quatro cantos. Aprisionado e sozinho. Exposto ao nu da face.

Ao primeiro sinal de desconforto, reagiu: -Ainda sou bonito, pensou franzindo a testa.

Sua frase escondia um temor que provocou, vinda das profundezas do útero cerebral, uma pergunta inesperada: -Seria a preocupação com a beleza um problema?

O golpe ficaria mais forte, como se o cérebro, cansado por anos, revoltasse buscando o consciente. -Porque reparo minha beleza em primeiro lugar?

Uma emoção invadiu os olhos, antecipando a derradeira pergunta: -Sou tão preocupado assim com as aparências ?

O inimigo cravava a espada em seu peito chegando ao ponto doloroso. Se não reagisse, morreria ali, sangrando. Seria hora de chorar pedindo perdão a si mesmo? A idéia de uma vida de aparências era inaceitável, medíocre, insuportável. Logo ele, não poderia ser.

-Mas beleza pode ser um sinal de saúde. A frase cuspida sinapse abaixo mostrava uma saída. A face reagiu com um leve sorriso de lado, pressentindo uma retirada triunfal.

-Claro, não são as aparências que me afligem e sim uma preocupação com a saúde, e isso explica minha preocupação com a beleza! Sua habilidade em construir tiradas de efeito era inabalável e com esse ultimo pensamento finalizou a desculpa salvadora.

Pelos quatro cantos, apesar da aparente derrota, o espelho sorria. Sua sabedoria milenar indicava que havia ganho outra vez. A raiz do medo mantinha-se inconsciente. Dessa vez, por pouco.

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O elevador parou no quarto andar. Ele pode ver duas portas ao fundo do corredor. Saiu e sentiu o elevador fechar em suas costas tornando tudo insuportavelmente escuro.

-Aonde estaria o interruptor? A escuridão era abissal.

-Franziu os olhos. Nada. Lembrou que havia um vaso e preferiu não se mover. Chamou o elevador. Sem ele seria impossível achar o interruptor.

Enquanto esperava, recordou sua teoria profetizada em um bar com amigos: "O índice de stress pode ser medido pela ansiedade com que esperamos o elevador. Tem gente que entristece, tem gente que aperta o botão de novo, tem gente que não para quieto."

20 segundos depois e nada do puto do elevador. O tempo, no escuro, parecia alargado e perigoso. Tateando, sempre pensando no vaso, seguiu lentamente ate achar uma porta. Hesitou.

-Seria esse o 404 ?


(Leia o conto completo no arquivo em word, 'blueprint' - link na barra lateral)

Não Sei Quanto a Vocês


Pedro Rodrigues


- Não sei quanto a vocês, mas eu poderia devorar uma bela vitela inteira.
- Concordo, já passamos umas boas duas horas perambulando nestas masmorras, vamos embora.
- Não são masmorras, o local é até aconchegante para uma construção tão antiga.
- Masmorras... Quem sabe não podemos encontrar alguma? Vamos inspecionar pelo lado de fora, buscar por alçapões. Por que parar agora a busca pelos segredos e mistérios que se escondem nestas pedras anciãs?
- Que segredos e mistérios? É apenas uma capela antiga, de pedra. E você não estava agora mesmo falando em ir almoçar?
- A vitela que nos espere, chegamos até aqui, não é sempre que encontramos uma edificação desconhecida e misteriosa como esta.
- O que há de misterioso, é uma simples capela medieval do período românico.
- Românico? Veja estes entalhes nas colunas do saguão, estes padrões não surgirão na arquitetura européia até o período gótico.
- Pré-gótico.
- Que seja, são ao menos cinco séculos de diferença.
- E a altura da nave central, também não condiz com o período românico.
- Vamos com calma, não pode falar em nave de uma capela.
- Como você pode afirmar que é uma capela e não uma igreja? Veja o tamanho deste saguão!
- Não havia me dado conta disto, vocês notaram como ela parece bem maior aqui de dentro?
- Hm? É efeito da pintura. Provavelmente...
- Eu sou grata por não poder ver os afrescos do teto, parecem horripilantemente disformes.
- Efeito dos elementos e do tempo.
- E você ainda não me convenceu de que se trata de uma capela, pode bem ser uma catedral.
- Ora, também não exagere!
- Não há espaço para fiéis, certamente trata-se de um local de devoção solitária.
- Onde algum cavaleiro pode ter passado noites em claro rezando, preparando-se para a batalha.
- Se a construção já não tivesse sido abandonada muitos anos antes de surgir sequer o conceito de cavalaria.
- Não vou discutir com você. Mas parece, de qualquer modo, que já exploramos muito bem todos os três aposentos, não acham?
- Quatro.
- Como?
- Quatro aposentos.
- É mesmo? Acho que contei errado.
- Contou errado de um a quatro?
- Oras, o que há de mal, um erro bobo, não pegue no meu pé.
- Então vamos à vitela?
- Depois, vamos procurar as masmorras.
- Não há masmorras.
- Como pode ter certeza?
- Vamos para fora, por favor, estou me sentindo um tanto enclausurada.
- Nesta amplidão?
- Deixe de ser chato, vamos sair e procurar as masmorras.
- Oh, bem, vamos sair de qualquer modo.
- E Harry?
- Está nos aguardando no carro.
- Ele não quis vir?
- Não acredito que Harry deixaria esta oportunidade. Não é do seu feitio desprezar mistérios e emoções.
- Bom, ele não veio, certo? Não está aqui, como podemos todos bem ver.
- Mas você se lembra de ter ficado no carro?
- Onde mais pode estar? Vamos vocês dois, vamos embora, acho que estou com dor de cabeça. A vitela.
- Espere. Alguém concretamente se lembra de Harry ter ficado do lado de fora?
- Se ele não veio é porque ficou, qual o grande mistério sobre isto?
- Mas... Ele não veio?
- Oras isto está ficando cansativo, ele não está aqui, está? Então é porque ficou!
- Ou se perdeu.
- Em três cômodos?!
- São quatro cômodos, você mesmo me alertou.
- Hm... Sim, sim, não interessa, é impossível se perder.
Harry socava paredes impossíveis em passagens inexistentes.
- Escutem, vocês se lembram do momento exato em que entramos aqui?
- Sim, avistamos a construção ao longe, em um monte muito verde, nos interessamos em saber o que era, pois não constava no mapa. Nos aproximamos com o carro, estacionamos ao lado do bosque de ciprestes...
- E?
- E entramos, todos nós.
- Nós três.
- Eu lembro de olhar para as gárgulas da entrada e apressar meus passos. Senti calafrios sendo observada por aquelas sinistras evocações pétreas de pesadelos ancestrais.
- Não colocaria em tão belas palavras, mas senti também a necessidade de me apressar adentro da porta.
- E Harry?
- Ficou no carro, entramos apenas nós três!
- Não! Pense bem, foi ele que saiu correndo do carro e nos esperou embaixo do relevo da porta, fazendo uma ridícula careta, imitando a gárgula.
- Você pode ter razão...
- Não, isto foi hoje de manhã, em outro local.
- Ainda é manhã, e esta foi a primeira parada do dia. Não é possível que se esqueceram, foi a menos de uma hora.
- Só isso? Pareceu que estávamos aqui quase o dia todo...
- Espere, Harry não voltou depois e saiu para o gramado? Ele se apressou, entrou quase correndo assim que nos aproximamos...
- E disse: “Nenhum medo pelo desconhecido!”
- Haha, foi sim, Harry é tão divertido.
- Mas, se ele entrou, como não está aqui?
- Ele saiu de novo.
- Não, ele definitivamente não saiu de novo.
- Mas...
- Você se lembra dele ter saído?
- Acho que sim. Talvez... Oras, se ele entrou e não está aqui, certamente saiu!
- Mas você está supondo, não se lembra de verdade.
- Não, não me lembro. Também não lembro de Harry ter vindo conosco. Acho que não...
- E lembra-se dele ter ficado no carro?
- Onde mais pode ter ficado?
- É isto que estou dizendo, não sabemos se ele está ou não aqui dentro, estamos fazendo suposições, mas não conseguimos lembrar do que aconteceu a menos de uma hora.
O grito agudo lancinou os tímpanos dos homens. Por que mulheres gritam assim?
- O que foi?
- A tapeçaria, eu, a figura. Eu observava a tapeçaria e ela, ela... Me encostou, o desenho da tapeçaria estendeu a mão e me agarrou!
- Qual tapeçaria?
- Aquela com a figura de um rei sentado.
- Não há nada parecido com uma tapeçaria ou figuras humanas, apenas as cortinas apodrecidas e rotas. Sem imagens, apenas padrões mouriscos.
- Você disse que a tapeçaria a agarrou?
- Isto não importa, não há tapeçaria, ninguém agarrou seu braço.
- Vamos embora, vamos embora, por favor. O toque frio daquelas mãos, por favor, vamos embora. Não quero mais ouvir, não quero mais, por favor!
- Ouvir o que, o que está te atormentando?
- Chega, certo, chega! Vamos embora, a moça está em nervos, por favor, seja cavalheiro e respeite.
- Sim, certo, me desculpe. Vamos prontamente, Harry deve estar nos esperando com a vitela.
- Harry?
Os três dobraram uma esquina. Uma mesma e única esquina, em direção à saída que estava – como não repararam? – à sua frente.


(Leia o conto completo no arquivo em word, 'blueprint' - link na barra lateral)

15 de jul. de 2006

Diálogo com Psi



Ro Druhens


- Bom dia!
- Por que?
- Por que o que?
- Por que bom dia? O que tem o dia para ser bom, melhor que o anterior?
- Desculpe, é talvez o hábito..
- Não existe hábito. Você apenas repete padrões arquetípicos impregnados no inconsciente coletivo. O homem ainda engatinhava e grunhia e isto não garantia nada que melhorasse o dia
- É...tem razão
- Claro que tenho razão. E pouco me importa ter razão. Não quero ter nada, nem ser nada entre o ser e o ter a razão é manifestação do animus aprisionado em sua forma feminina e as mulheres são estrupadoras da razão...
- O senhor é psi?
- Não, sou bailarino
- E esse mau humor?
- Só quando respiro.
- Respira com muita freqüência?
- Não, sou asmático.
- Bem, então vou indo
- Não vai não, pensa que vai , esquece calcinha, quer voltar. Entendo seu sub-texto
- Realmente, não sei o que dizer...
- Você sabe mas não tem coragem. Tira o phalus do seu pai da boca e fala.
- Por favor, o senhor me ofende.
- Você quer ser ofendida. Quer apanhar na cara. Quer me dar a bunda.
- Quero! Mas o senhor precisava phalar tanto?

11 de jul. de 2006

Patrícia e o Cachorrão


Bruno Accioly

Ele: ... puta merda, assim... só não pára agora... aí... aí... aíííí, Patrííícia...
Ela: Patrícia?
Ele: ... a... não, não pára, não... mas porq...
Ela: Filho de uma puta! Que merda é essa de “Patrícia”?
Ele: Quem? Mas do que droga você está falando? Olha, volta aqui bebê...
Ela: Corta essa... cê tava gemendo e soltou um: ‘aíííí, Patrííícia’!
Ele: Nem, lôca! ... eu disse: ‘aí delícia’!, e nem foi tão afeminado assim como você fez. Agora vem cá e vamos...
Ela: Delícia?? Delícia o caramba! Você disse Patrícia que eu ouvi muito bem, seu cachorro miserável. E tira essa mão de mim...
Ele: Já falei que você ta viajando. E, além do mais, eu nem conheço Patrícia alguma... (pausa) além da sua irmã...
Ela: Minha irmã??? O que você quer di... cê tá comendo a minha irmã?
Ele: Como é? Eu só... de onde você tirou essa idéia?
Ela: Você acabou de falar!
Ele: Eu não falei nada! Só disse que sua irmã é a única que conheço com esse nome!
Ela: Então!
Ele: Então? Mas eu não disse que “tava comendo a sua irmã”.
Ela: Não disse... mas é tudo muito óbvio... e você tá, né seu bosta? Eu te conheço.
Ele: Claro que não... só tenho olhos pra você.
Ela: Mas quem tá falando de “olhos”, corno desgraçado? Eu tô me referindo a essa sua “piroquinha” pendurada aí.
Ele: Piroquinha? Ah, agora é piroquinha? Dois minutos atrás era um ‘caralhão’. “Ai, vem com esse caralhão gostoso, vem meu lindo”.
Ela: Isso foi antes. Antes de você comer a minha irmã.
Ele: Mas eu já disse que não comi ninguém, amorzinho.
Ela: Amorzinho?? Amorzinho?? Que porra é um amorzinho?? Você nunca me chamou de... aaaah... volta aqui seu cachorro. É assim que você chama a vadiazinha, não é...
Ele: Me solta! Vamos conversar...
Ela: Conversar uma pinóia... essa já é a segunda hoje. Você deve achar que eu sou muito otária...
Ele: Longe de mim, linda.
Ela: E nem tente concertar...
Ele: Patrícia, escuta...
Ela: Como é?
Ele: ... merda.
Ela: Eu vou te bater muito, seu grandíssimo merda.
Ele: ... jura? Mas prometa que vai me amarrar antes.
Ela: ...
Ele: ... vai.
Ela: ... um dia eu te mato. Ah, se mato.... meu cachorrão.
Ele: Grrrrrrrrr…

Ato Falho



Replicante Raquel

Ela furou com um palito os últimos pães, desligou o forno, foi até o lavabo, desistiu. Tinha suado um pouco na cozinha mas não retocou a maquiagem. Havia uma espécie de pacto entre eles de se encontrarem sem retoques, sem edição, sem cálculos, mínimos que fossem. Ele tinha dito que gostaria de descobrir no beijo daquela noite todos os sabores que ela tivesse provado antes dele. Ela achou nojento, escatológico, vulgar, mas concordou macia, sempre cedia assim nesse tom acostumado, mesmo quando brincava daquilo, ou principalmente quando.
Resignou-se ali na fresta.
Ele nem bateu à porta, empurrou e entrou, ela saía do lavabo e a porta atingiu-a em cheio na testa, ele nem viu que ela tinha se ferido, jogou-a no chão e apertou-a sob seu corpo gordo. Bruto, deve ter me quebrado umas três costelas. Ela descobriu o quanto estava infeliz, traída e empanturrada por relatórios ocos sobre sensualidade que ela e ele a si mesmos se impingiam achando-se irreverentes. Desta vez custou, a mentira já se esvaía, tola, pífia, bolha de sabão, esfacelava a cena, ele apertou-a mais ainda contra o tapete e o garfo que ela tinha deixado cair ali da pizza da noite anterior cutucou-a um pouco, ela sentiu a pressão do súbito tridente mas não conseguiu se mexer para se desvencilhar daquilo, então como num sonho a lembrança de Brando voltou à sua mente, ao seu coração, ao seu sexo triste, Brando era terno, forte também e terno, quando os dentes do garfo finalmente conseguiram furar seu moleton sangrando-lhe as costas o nome dele emergiu sem luta da garganta rouca e aguerrido aumentou seus lábios como nenhum botox ou outro fio de ouro ou batom de mentol assim jamais faria: Brando. Mas quem é Brando??? Ela não quis explicar nem sentiu culpa, ele praguejou alto até a rua, bateu a porta do carro com estrondo e a xingou. Foi delicioso. Ela se levantou vencida pela ternura antiga da lembrança súbita. Brando. Sentou-se sob as estrelas e viriam muitas noites e a certeza muda, quando a campainha tocou ela estremeceu, demorou-se um pouco numa estratégia perfumada, esperou que ele tocasse uma segunda vez e sofresse um pouco, mas ele poderia muito bem num gesto de elegância e amor-próprio não ousar uma segunda vez e jamais voltar e ela não saberia mais viver sem ele. Faiscou na porta. Abriu-a afogueada e encontrou-o ali, sereno, rindo, levantando do chão os jornais dos últimos dias que ela não tinha recolhido, segurava uma flor vermelha enrolada num celofane muito fino e poeticamente opaco, era mais um de seus enigmas. Brando era diferente de tudo o que já tinha visto. Esta flor não pode ser deste planeta, ela falou prevendo.
Se olhavam fundo, ela tirou um cisco invisível que ele escondia no suéter, não tinham feito qualquer pacto mas tudo era solene entre eles, sempre tinha sido, como que preparado há vidas. Alguma coisa começou a pulsar, a puxar prá perto, o estômago fazendo voltas já se inventavam um ao outro naquele desejo baio e já queriam se devorar. Me espere um pouco, ela pediu. Um pouco só. Mexeu nervosa na nécessaire, esfregou a pequena lua com um pouco de pasta de dente até ficar radiante, reluzente, linda, pendurou-a de novo no umbigo, o censor do piercing apenas confirmava o que ela praticamente já sabia. Quando voltou com aquele ar seguro e viu nos olhos dele uma certeza triunfante, sabia sem nenhuma dúvida que nunca, nunca diria o nome de outro homem no ouvido dele, não, não, jamais diria, aquele ato falho era impensável.
Projetaram-se leves para além do arco, caminhavam juntos para encontrar o ogro, a coruja, o escorpião de mil pernas, o olho de Deus, qualquer perigo, todas as alegrias. Que Lua é hoje? Um na frente do outro o raio interrompeu a frase, cortou com força de foice sua vogal mais brilhante, sua primeira declaração de amor. Riram e o susto suou devagar aquela rua do planeta e o destino se fazia ardente, craquelê, imponderável. Brando abriu a porta da nave e estendeu-lhe a mão, viajariam enfim de volta para o Azul. O Azul! O Azul!
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imagem: “Papavero nell'azzurro del cielo”..by palclaud2 ..Album: Evviva! Seppur in ritardo e' arrivata anche qui la primavera. The spring has come.. .."Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved."

A Semana



Ricardo Mello


Eles estavam na cama, debaixo das cobertas, quase prontos para dormir.

- Se fosse possível o que você trocaria, o corpo ou a mente ?
- Que pergunta mais besta.
- Pensa ai', me diz, o corpo ou a mente ?
- Ah, sei lá. O corpo.
- Assim não vale, tem que afirmar.
- O corpo, já disse.
- Porque o corpo?
- Não te parece obvio?
- Não pra mim, então, porque o corpo ?
- Porque meu corpo envelheceu e minha mente ficou mais sabia.

Ela estava certa. O tempo havia lhe deixado mais serena e amadurecida.

- E você ?
- Eu o que ?
- Não se faca de tonto, agora é a sua vez, você trocaria o corpo ou a mente ?
- A mente.
- Claro que seria a mente, não esperaria outra coisa de você.
- Porque ?
- Simples, porque você dedicou muitos anos a se manter em forma e decidir pelo corpo ao invés da mente seria admitir derrota, o que convenhamos, não faz o seu estilo.
- Hmmm. Faz sentido. Mas decidi pela mente por outro motivo.
- Qual então?
- Não consigo mais aprender como antigamente. Estou com a mente cansada.
- Cansada ? Hmmmm. Como assim, me da' um exemplo ? Ela sempre pedia exemplos e ele resolveu ironizar:
- Putz.. tem certeza que trocar o cérebro não seria melhor pra você ?

Ela simulou um chute debaixo dos lençóis, desses de mentirinha, só pra fazê-lo rir.

- Eu quero um exemplo !
- Tá bom. Olha, era uma vez um menininho muito inteligente que vivia ...
- Para de me sacanear, criancinha é a sua vó!
- Mas eu to dando um exemplo!
- Tá nada, ta' me sacaneando como seu tivesse 2 anos e você sempre faz isso pra me irritar.
- Eu heim, que reação mas abrupta, parece mesmo uma criancinha de 2 anos.

Um silêncio pairou no ar, tenso.

Ele sabia que o próximo ato seria decisivo:

- Se virasse de costas e ficasse indiferente, eles ficariam de mal por mais ou menos uma semana.
- Se ficasse indiferente mas seu corpo buscasse o dela com toques aqui e ali, a briga duraria no máximo 2 dias.
- Se desse um beijo de boa noite dizendo que a amava mesmo com as briguinhas e chegasse perto do corpo dela pra fazer conchinha, ai' poderiam ate' fazer amor em questão de minutos.

A vida de casal tem nuanças impressionantes.

Decidiu dar um beijo mas foi surpreendido. Ela, mais rápida, virou de costas totalmente indiferente.

A semana, ia ser dura.

10 de jul. de 2006

Ato fálico...falho! Ato falho



Ben Iamin


- Amor, abra essa porta...
- Não!
- Você me entendeu errado!
- Eu ouvi muito bem o quê você disse!
- Amor...
- E não me chame mais de amor, tá ouvindo? Nunca mais!
- Pelo menos abra a porta!
- Não abro merda de porta nenhuma! A partir de hoje todas as portas dessa casa vão estar fechadas pra você, seu insensível machista aproveitador!
- Seu o quê?
- Insensível, machista, aproveitador...
-Ah....
- ...e surdo!
- Lourdes, abra essa porta agora!
- Ah, cretino, já sou Lourdes? Já sabe meu nome? Não sou mais Rosário não? Hein? Nem Fátima? Nem...nem qualquer outro santuário da Virgem? Seu...seu herege!
- Lourdes...
- Não!
- Mas eu nem...
- Não! Qualquer que seja a pergunta, a resposta pra você a partir de agora vai ser sempre não!
- Lourdes, deixe de bobagem e venha comer...O almoço vai esfriar.
- Não quero saber. A gente não tem mais porquê almoçar juntos. Você nem sabe quem sou eu!
- Lourdes, deixe de drama e venha comer!
- Ah, repetindo o meu nome pra ver se decora, né?
- Não, Lourdes...Quer dizer... amor!
- Não me chame de amor!
- Lourdes!
- E pare de falar meu nome, Alfredo!
- Como é?
-Pare de falar meu nome!
- Eu não me chamo Alfredo...
(silêncio)
- E não mude de assunto!

23 de jun. de 2006

Réquiem inacabado




Replicante Raquel

Rosena tinha o peito doído, remédio algum aplacava, Viuvão assim mesmo insistiu Deixa eu ajudar você, Rosena. Nessa hora doída Rosena dizia Sou filha de tarântula. Rosena picada de aranha e cobra. Rosena esculpida dentro de mim.Vejo-a assim um sumo de cedro escorrendo, passos fortes sobre o chão, veludo macio de saia esfregando o calor da coxa suada. Rosena pegava o bandolim e gritava coisas altas de paixão. Viuvão acudia balançando sais, o domingo hoje se estica feito elástico e couro de tatu, quem pintou essa estrela mais rubra?! Quem estendeu essa escada para o Céu?!! Juro que não pintei aquela nuvem, não fui eu, mas queria tanto ter feito, ah! É sempre o vento artesão.
Os descendentes hoje se reúnem, sonham motivos, forjam mentiras, inventam circunstâncias. Fazem dela o que bem querem. Não pode mesmo ser de outra forma. A boca enorme de Rosena está fechada para sempre. Não pode mais sorrir, reclamar de injustiça. Rosena está profundamente calada desde a crise de apendicite do carnaval de 1929. Hibernou, virou retrato. Está perpetuada no Museu da Imagem e do Som. Introduziu sons dodecafônicos no bandolim, enfeitou nossa árvore de mulheres. Mas na casa de Armanda é assunto que não pode ser tocado. Você puxou a avó, desgramada. Quem? Eu?????
Não há trégua. Igualzinha. É quando fazemos das nossas, chegamos ávidas, disfarçando, rondamos a galeria dos parentes com um ar sonso excitado. Queremos nos eximir? Culpá-la? Hoje quero adorá-la. Desenterrá-la com desvelo, sem desmanchar seus pecados. Quem tirou este retrato? Vocês não têm outro assunto?? Fui eu.
Queria ter sido. Rosena cavalgou nua na chuva, viveu na casa grande envidraçada que se entortava na ilha feito uma centopéia. Um dia ela e a filha encontraram perto da entrada o bicho cheio de pernas, Aninha era pequena, se agacharam e olharam, Rosena explicou abrindo a saia É assim uma coisa esquisita cheia de perna e desejo, feito mulher, minha filha, feito nós duas e todas. Aninha repetiu no colégio, vieram reclamar. Dêem-se ao respeito, senhores! Viuvão defendeu. Minha mulher é uma artista! Os filhos cresceram admirando. Tanto amor, tanta paixão. Por que nossa geração a perdeu? Não adianta olhar pro outro lado. Estou falando com você. Quantos anos será que ela tinha? Viuvão não podia saber, ela escondeu sempre a idade, talvez fosse mais velha que ele, tanta dama criada por governanta francesa na Capital da República, Viuvão escolheu a dos olhos. De onde será que ela veio? Filha de cigano? Era bruxa? Nunca vi olhos dessa cor, de orquídea da duna, violeta, alguém mexeu nesse aqui. Em mim também. Vão esconder até quando? Pra que tantas perguntas inúteis?!! Ninguém vai poder responder! Estas malucas fazem o que bem entendem com a história! Querem ser igual a Rosena. Se soubessem! Se soubessem! Coitado do bisavô. Armanda anda sem parar, bate nervosa o tapete, que vergonha, meu Deus, quanta dúvida grudada, terroristas, safadas, diabo de sangue mais forte, Armanda bufa, estremece, parece que reza Livrai-nos Senhor da fúria dos genes Amém. Acaricio o retrato, tanta dívida tecida. Alguém marcou esse esse aqui com o dedo. Vocês não lavam a mão antes de mexer em retrato??? Gente mais mal educada! Me marcaram com uma tatuagem na alma. Pronto. Ninguém mais mexe no álbum, vou trancar. Eu abri e gostei. Uma coisa assim esquisita cheia de perna e desejo, feito nós duas, Aninha, feito elas também e mais todas. Mesmo assim ainda não posso morrer. Quero mais.
Vocês roubaram uns retratos! Cadê? Onde está o bandolim da vó?! Eu quero tanto ele pra mim!!
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imagem: Kiss kiss kiss kiss........by bennystroller..Album: True Music from Budweiser.. Webshots. "Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved."

8 de jun. de 2006

Minha máxima culpa

Ben Iamin

“Não fui eu” - penso ao acordar, com a camisa ao avesso e um gosto amargo na boca.
“Não fui eu” - decido, erguendo as pernas doídas, abrindo e fechando os dedos levemente dormentes.
“Não fui eu” - assobio, lavando as mãos na pia sem nem ao menos olhar pra elas.
“Não fui eu” - esqueço, ao arrumar o apartamento transtornado, desvirando móveis, varrendo cacos, raspando marcas de unha na parede.
Não fui eu?
Não...
Não, não fui.
Eu?
Corro até o banheiro, ouvindo a frase latejar dentro da minha cabeça.
A cortina verde-água cobre a banheira. Posso ver que contorna um corpo.
Não?
Pé ante pé me aproximo, e, já em sua frente, afasto-a com uma mão direita trêmula.
Não, não fui eu.
Não

Nada
Lá.
Passo algum tempo olhando o fundo imaculado da banheira. Gostaria que minha consciência tivesse essa cor.
Corro até a sala, jogo-me no sofá e zapeio a televisão com o controle remoto.
Só então.
Se não fui eu, por que tenho tanto medo de descer até a garagem e checar a mala do carro?
Desligo a televisão num clique e respondo ao "boa noite" de Willian Bonner. Um boa noite carregado de julgamento, senhor Bonner? De ironia?
Não, meu caro.
Não fui eu.

2 de jun. de 2006

A primeira


Bruno Accioly
Eram tempos difíceis, de concorrência feroz, onde somente os astutos sobreviviam. A vida inteira de trabalho honesto não havia lhe rendido fruto algum e, enquanto o suor escorria frio de suas costas pelos pequenos sulcos do encosto, culpava-se por ter perdido tempo demais planejando. “A molecada não tem esse problema... age como que por instinto”, refletiu.

Encolhido sobre a poltrona de veludo vermelho, ocultava-se da ingênua oferta da lua que, refletida pela janela aberta, iluminava parte da cama a sua frente e a reprodução de uma obra de Blake na parede. A mão esquerda tremia quase que imperceptivelmente sobre um tecido gasto, denunciando leve efeito colateral decorrente da abstinência de nicotina – “quarenta e oito anos, exatamente!” Passou os dedos por entre os cabelos grisalhos escorridos sobre a fronte e suspirou baixo, evitando que o som comprometesse, de alguma forma, a composição à sua frente. A jovem, objeto de seus mais recentes pensamentos, repousava imaculada sobre lençóis amarelados de algodão pelos quais escorria, lentamente, sua doce inocência. Seus pequenos pés repousavam paralelos, envoltos por meias finas em uma tentativa fútil de esconder o trato cruel das aulas de ballet. Estrias suaves desenhavam na pele ramos outonais sobre nádegas vigorosas, enquanto uma pequena vela à cabeceira explodia seus fachos ousados sobre lindos seios em desenvolvimento. Desprotegida dos perigos noturnos, sua áurea de ingenuidade exalava uma rara sensualidade entre orifícios ocultos.

Sentado, experimentava entre as pernas o fracasso da sua masculinidade. Sonhara com essa noite inúmeras vezes a ponto de calcular, com precisão cirúrgica, todos os detalhes sórdidos em um lado ignorado de seu cérebro; que, e apenas poucos estudiosos concordavam, estava diretamente relacionado ao inconsciente instintivo – “o animal oculto”, diziam.

Imagens sem cores do doce perfume juvenil fluía por entre suas veias, assim como do calor da respiração feminina ofegante aquecendo seu torso magro e sem pêlos. Era a primeira vez que fazia isso e, embora extremamente nervoso, não sentia medo daquela pequena parte de seu corpo que gostaria de compartilhar a nervosa pressão de sangue que fluía ao penetrar sua ternura imatura de menina; afogando para sempre a divindade em um mar coagulado de emoções. Mas falhou! E esse fracasso franzido sobre olhos semicerrados lhe angustiava, extirpando de seu coração as últimas pregas de esperança.

Ele levantou o velho esqueleto com determinação. Ir embora nesse momento não traria solução alguma ao seu problema; talvez ainda houvesse chance de tirar proveito da situação. Aproximou-se da forma estática que cintilava sobre o tálamo e arriscou lhe tocar a pele úmida e macia. Pôde sentir uma intensa fragrância do mel de amêndoas queimadas. Os longos fios da cabeleira negra descendiam em curva por detrás do travesseiro, desmoronando em volume sobre o chão de madeira. O sangue ainda estava quente e encontrava dificuldades em deixar a ferida; que acomodava sozinha dezesseis centímetros de uma lâmina medíocre. “Esse contrato me renderia uma grana boa”, lamentou.

Procurou nas gavetas por qualquer objeto que pudesse levar consigo e converter em, pelo menos, algo quente para saciar sua fome; mas parou logo, enjoado com a sensação de, como os abutre, ter de sobrevoar a vítima apodrecida. Aceitou esse serviço como a única forma, embora humilhante, de continuar lutando. Era pra ser simples: chegar, matar e sair pra coletar a grana; sem perguntas! Mas a idade e o rigor na disciplina, até para algo tão extremo à sua integridade moral, lhe tomou tempo demais. Tempo que não dispunha. Soprou a vela, ensaiou o sinal da cruz e, cabisbaixo, saiu com cautela para não alterar a cena do crime. Afinal, já haviam pegadas ensangüentadas e impressões digitais suficientes: “Esses moleques apressados! No final, acabam metendo sempre os pés pelas mãos.”

1 de jun. de 2006

Estátua


Grimble

Desde que a viu pela primeira vez, o moço franzino ficava de guarda. Todos os dias, feito um poste, em frente à janela da moça de cabelos cor de fogo. Fizesse chuva ou sol, tempestades, trovões, frio ou calor, lá estava
ele sempre de olho na janela onde morava o fogo dos cabelos dela.

Os transeuntes, os vizinhos, no princípio todos estranharam aquela presença, aquele sujeito esquisito que não se mexia. Chegaram alguns inclusive a deixar cair umas moedas aos seus pés. Aos poucos, ficou
conhecido como "a estátua".

Não sentia fome. Alimentava-se do encantamento por que estava tomado. Sede, matava-a na chuva que escorria-lhe no queixo. Quando estiava, secavam-lhe os beiços.

Uma noite vazia de nuvens e de pessoas na rua, ele resolveu chamar a atenção da moça. Pegou uma pedra pequena e atirou-a na vidraça da janela. O efeito não foi o esperado: ao invés de fazer um barulhinho e apenas acordá-la ou chamar sua atenção, a pedra quebrou a vidraça. O barulho acordou a vizinhança, que veio desabalada olhar quem tinha feito aquilo. Reviraram tudo e não encontraram o autor daquele vandalismo. Foram dormir, desolados.

Nos pés da estátua do moço, uma mancha larga de urina do yorkshire da vizinha.