13 de ago. de 2006

Todo Dia


Alexandre Abud


Há 25 anos, a mesma coisa. O mesmo horário gravado no mesmo despertador. Os chinelos na mesma posição. O banho e a barba ao som do mesmo rádio de pilha AM, sintonizado na mesma rádio. No mesmo trabalho a mesma rotina. Chegar na repartição pública, pendurar o terno na mesma cadeira. A mesma ordem dos papéis, os mesmo carimbos, a mesma coisa. Na volta para casa, o mesmo caminho todos os dias, no velho fusca comprado zero através de um crediário de prestações fixas, idênticas. O sofá puído em seu lugar. Todos os telejornais, todos os dias. O mesmo pijama, o mesmo beijo de boa noite na mesma mulher e o mesmo sono tranqüilo. Os imbecis dormem bem. A vida seguia assim até que numa atípica segunda-feira a polia do cansado motor do fusca, exaurida pela mesma rotina de tantos anos, cedeu, partiu-se e fez com que nosso herói, pela primeira vez em décadas tivesse um imprevisto. Atordoado desceu do carro e andou pela rua a esmo, procurando uma oficina. Os imbecis, apesar de dormirem bem, perdem-se diante do inusitado. Notou que estava perto de casa e lembrou-se que naquela gaveta onde todas as ferramentas ficavam precisamente organizadas como numa mesa cirúrgica havia uma correia reserva. Decidiu ir até lá, buscar a correia e na volta acharia um mecânico. Os imbecis não têm instintos. Nas desconhecidas ruas do bairro notou, com espanto, que havia frondosas árvores, pouca gente e cheiro de jantar sendo preparado nas casas iluminadas. Irritou-se por ter passado do tradicional horário da janta, do telejornal e do beijo de boa-noite. Os imbecis não entendem o destino. Quase não percebe um casal dentro de um carro parado sob uma imensa figueira cuja rotina provavelmente era mais monótona do que a dele. Os imbecis não conhecem seus sentimentos. Espantou-se com o frenesi que tomava conta do carro e sem conhecer exatamente a razão, resolveu parar e observar escondido sob a mesma sombra. Notou que o sexo era selvagem e maravilhou-se. Notou também enorme semelhança entre a mulher do carro e sua esposa. Demorou até certificar-se de que, de fato, era ela. Os imbecis enxergam mal aquilo que não querem ver. Neste momento a cela se abriu e com ela foram libertados sentimentos desconhecidos. Imediatamente uma inédita ereção. Aproximou-se do carro com olhos de fúria até então jamais experimentados. Expulsou com uma voz que não era dele o rapaz que há pouco possuía sua amada. Estuprou-a com violência animal, ali mesmo, naquele mesmo banco da frente, sob a mesma sombra. Arrancou-lhe os dentes com uma força que não sabia existir e caminhou rua acima com passos firmes, peito estufado e cabeça erguida. Viu coisas sob ângulos nunca vistos. Decidiu prosseguir e experimentar até o fim a força da fúria que o tomava. Entrou no primeiro boteco, tomou uma pinga, arrumou uma briga dos diabos com um pedreiro desempregado, armado e embriagado. Morreu livre e feliz, afinal, não era mais um imbecil.

3 comentários:

Anônimo disse...

Inveja mata? Beijossssssssssss, Budinho!

b.ponto disse...

nada como uma briga de bar pra trazer sentido pra vida...
ou pra falta dela..

haha
b.

Márcio disse...

Nunca ou sempre, né? Show de bola...só pra variar!