13 de ago. de 2006

Aprisionado


Replicante Raquel

No alto da montanha foi o açoite do vento. Éramos pequenos como gafanhotos que não premeditam com ruindade o fracasso de nenhuma safra. Por isso às vezes nos perdôo no alto da montanha.
De lá eu poderia olhar o mar. Tinha subido para a solidão e para o que o silêncio quisesse me dar, uns pressentidos ferozes frutos. Subi para ficar entre as árvores. A foice da Lua encontrou o lago por seu flanco oculto aberto na noite. Em volta de nós macios e solenes pisavam gravetos casais leais de caranguejos e aranhas.
Andavam assim nessa época, aos pares, e em outras? Como se desgarrariam? Parceiros nos tornamos. A Natureza tudo abarca e Jó olhava. Vivíamos os dois a mesma estação crua dos bichos. Jó olhava e os astros eram todos uma constelação de assédios. Jó começava a amassar de longe com o olhar o meu couro devagar e fundo como se eu fosse a vaca, eu não podia rir nem falar, era Vaca Amarela, mas Jó não impediu o meu grito. Desceu pelos fios brilhando cravejados carrapatos antigos. Desfazia nós, ressaca de brisa, laço de grama, vertigem. Eu quase sempre despenteada porque adormecia e vinham as formigas. Jó dava um jeito final e chamava para a mesa.
Lá dentro deslizando por tudo o seu olhar era um navio, boiava por trás da xícara à esquerda da garrafa térmica por cima do pão esticava a sua mão cheia, despencava a testa e tudo inundava a tristeza do meu bem. Jó sangrando era mais alto que as árvores, mais feroz que onças, mais manso que os bagaços rendidos no terreiro para o trabalho do Sol. Levantava e varria, varrer podia. Barata morta, mosquito, grão de arroz e de feijão, qualquer poeira, resistentes quimeras. Quando nem precisava Jó também varria. Fazíamos tanto silêncio que qualquer cisco caído era trovão. Nosso caminho foi esse, taquara e bambu, coisa aflita triturada no mato. Ouriço das pedras nosso querer e a alegria de ter sido mordida por suas formigas na encosta íngreme onde ninguém nos ensinou os perigos do amor.
Eterno e frouxo o seu cerco de olhar. Para eu não agüentar e falar. Menos que frase. Não precisava ser palavra, som que avizinhasse cercanias murmurando eu ia perder. Perderíamos ambos nosso mútuo ardor constante. Vaca Amarela. Quem falar primeiro perde todo o encanto dela.
Da montanha Jó olhou a cidade, encheu os olhos de neón. Mas antes foi aquilo. Antes foi tudo e nada, brincadeira, coisa alegre, paraíso e perdição, Jó começou com a vaca porque éramos gafanhotos. Continuou com a vaca para eu não poder me explicar, sabia o suplício que era, fazia tudo de propósito, caso tramado. Já tinha se esquecido das rusgas da tarde, mas sabia como me martirizar me calando. Decidiu então: Agora é Vaca Amarela. Quem falar primeiro... Levantou e varreu. Mu. Mu. Mu. Mu liberta. Varrer podia. Varrer curava. Varrer varria.
Varria varria varria. Voltava quase nunca redimido ao centro do silêncio onde qualquer som foi caos, desastre, um grampo meu sinistro sinal e derrocada de que antes do início dos tempos eu sempre louca me descabelava por ele. Tudo ele louco a puxar para o seu lado, tudo o que ele queria era pensar coisas assim de mim e eu não poder me defender mentindo que não. Ouriço das pedras o que ele foi, tentando me arrancar rumores.
Já tinha passado o comichão. Não estava mais inchado. Não estava mais vermelho. E de cada unha ia brotar um pé de salsa.
Jô já tinha sofrido bastante. Provoquei então Vai, Jó. Mostra tua língua prá Deus, que te priva.
Jó só riu. Não se vingou. Não me mandou raspar a panela. Pôs mais tarde uma toalha em meus ombros. Agora vamos brincar de outra coisa, falou. E começou.

O amor foi um túnel escuro até Jó chegar com o pente.
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(Imagem: Scarab Necklace..by nancyem1983 ..Album: Around The House Art...."Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved.)"

4 comentários:

Anônimo disse...

Bonito.

Ricardo Mello disse...

Tem jeito nao. Vicio, dose diaria, chame como queiras.
Mas que tenha formigas, no meio.

b.ponto disse...

muuuuuuuuuuuuu......

ficou otimo.

Márcio disse...

Ô viagem boa!