19 de set. de 2006

Retroceder Nunca, Render-se Jamais


Haruki Kume


Ele: Acho que estamos quase lá, né?
Ela: E eu é que sei?
Ele: Como assim? Que eu me lembre, estamos indo para a casa da SUA amiga.
Ela: E que eu me lembre, eu disse para você pegar a entrada 38, lááááá atrás.
Ele: Olha, eu já viajei muito por essas estradas, já estive em Ilhabela várias vezes, e nunca tive que pegar nenhuma entrada 38 pra chegar lá.
Ela: Tá, então faz o seu caminho.
Ele: Amor, não precisa se irritar, estamos aqui pra curtir um fim-de-semana romântico, só nós dois, naquela casa linda à beira-mar...
Ela: Eu não tô irritada.
Ele: Ta sim.
Ela: Não tô! Que saco!
Ele: Viu?
Ela: ...
Ele: Tá bom, tá bom. Mas sério, tenho quase certeza que a gente tá chegando. Vou até abrir a janela pra você sentir a brisa do...
Ela: Fecha, fecha!!! Droga, meu cabelo! Por que você tinha que abrir essa droga de janela?!?!
Ele: Eu já disse, pra você sentir a brisa de Ilhabela...
Ela: Que Ilhabela?
Ele: Como assim? Já estamos em Ilhabela!
Ela: Já estamos em Ilhabela?
Ele: Tenho certeza!
Ela: Engraçado...
Ele: O que foi?
Ela: Eu podia jurar que a gente precisava usar uma balsa pra chegar em Ilhabela...
Ele: Será? Acho que não, na verdade...
Ela: É CLARO QUE PRECISAMOS DA BALSA!!!
Ele: Calma aí! Muita calma nessa hora! Há quanto tempo você não vai pra Ilhabela?
Ela: Sei lá, 6 meses, eu acho.
Ele: Pois é, sabe em quanto tempo é possível construir uma ponte?
Ela: Eu não to acreditando! Você não tá falando sério...
Ele: É possível, oras! Você não viu aquela ponte na Marginal? Acho que não levou nem 3 meses.
Ela: Chega. Vamos parar e perguntar onde estamos!
Ele: Pra quê?
Ela: PRA QUÊ?!?!
Ele: Olha, eu tenho uma técnica infalível pra saber onde estamos.
Ela: É?
Ele: Procura uma imobiliária.
Ela: ???
Ele: As imobiliárias do litoral sempre têm o nome da praia no próprio nome. Tipo “Imobiliária Maresias”, ou “Imobiliária Pitangueiras”.
Ela: Essa é a sua técnica infalível?
Ele: Procura aí a imobiliária. Você olha do seu lado, que eu olho do meu.
Ela: Dai-me paciência, senhor...
Ele: E aí?
Ela: Peraí, tem uma ali... Imobiliária Itamambuca...
Ele: Itamambuca não é aquela praia logo antes da praia onde fica a sua amiga?
Ela: Você quer parar? Nós não estamos em Ilhabela!!!
Ele: Eu tenho quase certeza que é Itamambuca...
Ela: Nós não vimos nenhuma BALSA!!!!
Ele: Olha, tem outra imobiliária ali...
Ela: Imobiliária... Ubatuba! Imobiliária Ubatuba!!!!
Ele: ...
Ela: E agora, hein?
Ele: ...
Ela: Ficou sem palavras né? Admite agora que errou o caminho?
Ele: Eu estava pensando...
Ela: Sim?
Ele: Por que alguém chama uma imobiliária que fica em Ilhabela de “Imobiliária Ubatuba”? Amor, o que você está... amor, não abre a porta assim, o seu cabelo e... espera, não pula, o caminh...

16 de set. de 2006

Atalhos


Ben Iamin


“Siga em frente”, dizia a placa amarelada, lavrada de balas.
E ele obedeceu, já sentindo o sapato machucar os pés com força.
Tinha encontrado a estrada por indicação do velho da mercearia que lhe vendera seu primeiro peão. Infelizmente a orientação não tinha sido lá muito clara, ou o velho realmente não sabia onde ficava o lugar. E ele só conseguiu chegar até ali.
Quando o sol já lhe cozinhava o couro cabeludo, ele percebeu na imagem trêmula daquele calor, um ponto preto à distância. Um ponto preto que lentamente foi se tornando a primeira mulher com quem fudeu.
Sorrindo, com um vestido talvez um pouco curto demais pra conter o esplendor de suas coxas, a volúpia do seu decote, ela apontou um aparente atalho no meio do canavial da sua infância.
E ele hesitou. Não tinha certeza se gostaria de voltar à fazenda de seu avô, à irônica asma que algemara a sua diversão de criança da cidade no interior.
Mesmo assim, dirigiu-se até a entrada. Mas não sem antes tirar os sapatos e sentir aquela inconfundível consistência do solo de massapê.
Foi ouvindo o coro do berro dos meninos que ele adentrou o canavial, decidido.
E encontrou, no meio da plantação, o filho que nunca teria.
Quando segurou a criança nos braços, admirado com a semelhança, percebeu que não sabia onde estava.
Encontrava-se, enfim, irremediavelmente perdido dentro de si mesmo.

(Quadro "O canavial" - NELY AFFONSO RODEGHIERO)

15 de set. de 2006

Schizofagia


Pedro Rodrigues


60 trilhões de células auto-conscientes gritando “Eu quero”.
Micro-explosões químicas nas extremidades de cada neurônio, não passa um passo que não seja aprovado em consenso.
Doenças ribossomáticas em velhas veias capilares.
As possibilidades existindo concretamente como impulsos omnidirecionais; para frente não me exime de para trás – buscando alcançar todos os lados ao mesmo tempo, de meu centro incerto não atinjo sequer a periferia de minha epiderme.
Eximido de contato nas fronteiras de meu corpo, comunico-me de mim a mim, a informação transmitida em velocidades subatômicas ecoa e retorna de organela em organela.
A tempestade interna impede qualquer brisa de aproximar-se.
Estou saturado e já me acumulo em sedimentos. Não me misturo, decanto.
De canto.
Num canto, de cada canto de mim.
Cacofania ufanista.
Fã e canto; um universo solitário auto-envolvente, auto-existente, inconsciente, auto-conseqüente. Me criei às minhas imagens insemelhanças.
Sacudidelas no saco de células – alguém me desperta, abro o olho – luz transitando por nervos óticos – vibrações em meu tímpano, irreconhecíveis comunicações –
Desespero em alguém, de fora de mim, não me entendem, me vêm.
Me levam a andar.
Para mim...
Tanto faz.

Bushidô

Bruno Accioly


Embora empregasse uma força sobre-humana para não demonstrar a dor que sentia, seus olhos o traiam produzindo cascatas de lágrimas, em uma tentativa frustrada em diluir o mar de sangue que escorria por dentre o grosso piso de palha. No que o corpo pendia para o lado, concentrava a pouca força remanescente nas mãos machucadas, firmemente agarradas ao cabo da espada curta.

Procurava esvaziar a mente com o emprego de técnicas de meditação, mas uma música antiga tocada em harpa, pela sua avó quando ainda viva, ecoava longe em um tom constante. A neve espessa cobria as cerejeiras e os jardins suspensos de pedra, e sua brancura desgastada combinava com o arranjo de madeira negra que decorava a sala.

Sentia a lâmina fria transpor o quimono em seu dorso, enquanto uma pequena corrente de ar percorreria toda sua extensão e lhe ressecava as pontas dos dedos. Hiroshi inflou com dificuldade ambos os pulmões e, assim como seu pai antes dele, a conduziu com destreza milenar ao outro lado do abdômen, rasgando-o por completo e expondo, aos presentes à cerimônia, sua vida em detalhes; pura.

Dentes lascados rasgaram com ódio o lábio inferior, que sangrava para dentro da boca; porém, mantendo-a selada. Hiroshi não emitira som algum. Seu primo, posicionado logo atrás com a enorme espada sobre a cabeça, sentiu-se orgulhoso.

Enquanto tombava para frente, incapaz de manter retesados os músculos da coluna, Hiroshi observou sua esposa no fundo da sala – imóvel – e sorriu. A honra da família Saito havia sido preservada e seus membros poderiam, novamente, caminhar pelas ruas da pequena vila com a cabeça erguida; livres de falsas acusações.

Era fim do inverno no vale sob a montanha e o funeral chamou atenção, até mesmo, do senhor das terras. Sua esposa vestia seda pela última vez. Na primavera seguinte, o Shogunato se desfazia.

(Bushidô, que em japonês significa "o caminho do guerreiro", era um código de honra não-escrito e um modo de vida para os samurais (bushi), que fornecia parâmetros para esse guerreiro viver e morrer com honra.)

Segura minha mão

Paula Bonnano


Quero que me conheça.
Pego sua mão e dirijo seu caminho.
Vamos lentamente entre paisagens suaves.
Por vezes você me olha apreensivo, quase com medo de seguir em frente.
Eis, então, que alcanço seu olhar e explico, sem qualquer palavra, que você deve confiar em mim, pois não lhe farei mal algum.
Continuamos.
E agora você segura mais forte sua mão entre as minhas.
Carrego você como se fosse frágil.
Na realidade é, mas não tem coragem de dizer (ou assumir).
E não precisa.
Percebo, acolho e encerro você dentro do meu mundo.
Sua mão fica mais leve entre as minhas.
Não preciso mais olhar para trás.
Seus passos ficam mais confiantes depois dos meus.
E a paisagem começa a se concretizar.
Você já pode ver um pouco mais de mim.
O presente com suas estampas.
Fatos, sensações.
O passado com suas lembranças.
Sublimes, tortuosas.
Tudo dicotomizado e em harmonia.
Um inteiro com duas faces.
Continuo segurando suas mãos.
Levo-o para o futuro.
Sem antecipações, apenas repleto de vontades.
E vamos.
Você ao meu lado
Por esse caminho sem fim,
cheio de escolhas
e inteiramente meu...
ou melhor:
nosso.

Caminhos

Lia Noronha


Era uma espécie de trilha que deveria ser seguida rumo ao desconhecido
sem paragem sem ter ao menos um pouso que amortecesse o cansaço da viagem.
Idas e voltas com obstáculos imaginários e outros tantos reais.
Perdida entre os artífices que o desejo consegue permanentemente construir.
Querendo muito encontrar o amor que se esconde como tesouro : dentro dela mesma.

Parte 4

Bianca Accioly


As poucas nuvens foram tomando corpo e o vento mudou de direção. As folhas secas corriam pelo corredor de vento fazendo acrobacias num balé aéreo. A correnteza do rio parecia ter aumentado um pouco, indicando que a chuva já estava forte pros lados da nascente. Nos apressamos para ir embora pois o caminho era um pouco longo.
Ao chegarmos a clareira notamos que o cavalo havia se desprendido e tomado o rumo de volta. Estava com as pernas inchadas e não podia andar direito. Ângelo saiu desesperado pela trilha com esperanças de alcançar o fugitivo. Me vi sozinha numa caminhada longa que não conseguia percorrer, joguei o pano em volta da cabeça e fui andando devagar tomando meu mate tranqüilamente.
Quando a chuva chegou, já estava forte e pesada. Como não era a primeira nem seria a última que tomaria, segui a caminhada. Na parte mais fechada do caminho havia uma árvore caída, impedindo a passagem. Não tinha forças para pulá-la, então tive que me sentar e esperar Ângelo voltar.
As horas iam passando juntamente com a chuva, e Ângelo não retornava. Comecei a ficar com fome, e nessa altura com medo de onça ou cachorro do mato.
Com o sol já alto, sem dormir direito e desde cedo fora de casa, comecei a me desesperar. As pernas já estavam mais descansadas e resolvi tentar pular a árvore, pois gritar ou chorar seria em vão. Escalei a árvore com muito custo e continuei pela trilha.
Cheguei até a casa mais próxima, que era do compadre Nho Tito e peguei um cavalo emprestado. Já em casa, soltei o bichano que se bandeou de volta. Adentrei minha casa na esperança de encontrar o rapaz. Vasculhei por todos os cantos, na casa dele, no celeiro, na horta...e nada.
Estava muito cansada e faminta. Fiz um almoço rápido e deitei na rede da varanda na esperança de rever meu menino. Adormeci no mesmo instante, tive sonhos tão reais que não conseguia distingui-los da verdade. Despertei com a luz da lua cheia, os grilos cantando e vaga-lumes florindo o campo pardo.
Na estrada que levava à vila apareceu um homem montado, levantei-me afoita de felicidade, só podia ser ele. Quanto mais se aproximava, mais notava que estava enganada. O homem chegou a porteira e pude reconhecer meu compadre Nhô Tito carregando uma expressão preocupada. Tive palpitações que a muito não tinha, as pernas me faltaram e a vista escureceu. Antes de cair no chão vi Nhô Tito correndo em minha direção.
Não cheguei nem a abrir os olhos e senti uma pontada forte no braço. Levantei num grito afobado, reconheci o doutor Luiz com aquele sorriso estranho habitual.
- A minha menina está se sentindo melhor ?
Alarguei o sorriso por causa da “menina” mas senti outra pontada, agora na cabeça. Levei a mão até ela e senti meus cabelos molhados e uma parte muito dolorida.
- Sangue! Meu Deus, o que aconteceu comigo ?
Por algum tempo fiquei olhando os dois atônitos sem conseguir me lembrar de nada. Nhô Tito me explicou que eu havia caído e que veio me ver pois ficou preocupado em me ver saindo do mato sozinha lá pela hora do almoço. Sua mulher o mandou até aqui para saber se estava tudo bem comigo, achavam que eu já estava muito velha e um pouco maluca. Foram educados nessa parte, mas deu pra ler nos olhos deles.
Eu me sentia cada vez mais zonza, parecia que havia vivido um mês só nesse dia. Não conseguia distinguir o que era dia e o que era sonho. Fui levada até meu quarto, deitada na cama, tomei um pouco de sopa que Nhô Tito havia trazido e dormi novamente.
Fiquei cinco meses sem notícias do garoto. Minhas pernas ainda estavam debilitadas devido aquela caminhada. Eu ia me recuperando lentamente, passava as noites acordadas pensando em muitas possibilidades, apesar das perguntas desconfiadas das pessoas, descartei a possibilidade de uma emboscada.
Pensei em ir para a capital em busca de pistas, até que chegou um cartão endereçado à casa abandonada da frente sem nenhuma mensagem. O cartão veio postado de São Paulo, com a imagem do Museu do MASP, e a data do dia do desaparecimento de Ângelo.

Caminhos

Replicante Raquel

Ela desvencilhou-se dele a muito custo, deitou-se na cama e riu alto do seu ar sério, meio brava apertou pra trás o umbigo fazendo uma careta, ele puxou para cima o zíper do jeans muito justo, torcendo para enganchar no piercing e eles recomeçarem tudo aquilo, ela sempre o provocava com aqueles renitentes 9 quilos a mais que os doces perpetuavam na sua carne fogosa, gostava de guardar lá no fundo a lembrança grudenta das suas mãos viajando por seu corpo a noite toda e a levaria assim clandestina, inquietante, no forro da calcinha já um pouco engomada. Enfiou as botas mordendo os lábios, antes de saírem para o World Trade Center esmagou com prazer o corpo esmirrado de 5 formigas que deixavam o resto do bolo-mousse de chocolate que tinha comprado na doceira japonesa para comemorarem o 44o. aniversário de seu insólito e adorado marido, tinham chegado de Amsterdan há 2 dias, voltavam para o trabalho sem saber que nunca, nunca mais se beijariam. Mal tinham entrado no prédio e elas já começavam a descer, as formigas, intuitivas e vermelhas caminhavam depressa, nervosas, quase histéricas, desordenadas numa fila irregular, pressentiam o estrondo talvez e começaram a pular as escadas do 64o. andar para o 32o. se atropelando, quando o primeiro avião atingiu a primeira Torre elas foram carbonizadas no 37o. e não chegaram a esbarrar em Loreta Lee. Antes de saber da morte da filha caçula, Sarah Cohen ligou a televisão e caiu perplexa no sofá. O que era aquilo??? A Terceira Guerra Mundial??? Dali a um minuto detonariam a última bomba atômica como no filme “O Planeta dos Macacos”?? Nova York acabaria??? Trêmula, desesperada, telefonou aos gritos para a filha mais velha na Jamaica suplicando-lhe perdão. Cinco minutos depois Nova Iorque não tinha acabado. Sarah suspirou aliviada, logo depois bufou e arrependeu-se de ter sido piegas, recompôs-se, não admitiria que a filha provocasse a família com aquele deboche intolerável do romance com o cantor negro!! Discou novamente, para a Jamaica, vomitou toda a sua aspereza e deserdou a filha .Ficou sentada a manhã inteira no sofá arquitetando a vingança suprema contra o marido aparvalhado. Antes do meio-dia, 6 formigas decididas desceram da torta de maçãs à sua frente, atravessaram o lavabo, mergulharam nos restos sujos de papel higiênico na cesta abafada e voltaram para a torta. Sarah Cohen nem percebeu. Assim que soube da morte da filha sardenta no Wolrd Trade Center, James Cohen resolveu ser um dos médicos sem fronteira no Iraque, e também depois que viu aquele muçulmano esquálido jogado ali na calçada, escancarando confissões à desconhecida de suéter rosa que o amparava na poça de sangue, ele cantava, chorava e dizia que adorava cantar, Sempre adorei, não sei se canto ou se morro, a garganta de James Cohen travou de dor, o homem morria e a canção de ninar ancestral brotava como um bálsamo trágico de suas vísceras apunhaladas, lágrimas gordas escorriam, eram feitas de gergelim e sal grosso, Mohamed riu, seu canto foi mel sobre a tristeza da vida interrompida; e no Iraque, talvez já sabendo do destino do perfumista Mohamed em Nova Iorque, outras formigas tinham subido numa fila ordenada, caminhavam devagar e resolutas, quase más, invadiram o andar de cima da casa da família e atormentavam a avó chorosa no quarto, circundavam sua cama emoldurada daquela tristeza antiga de tantas perdas. Em Nova Iorque, James Cohen afastou-se um pouco, esbarrou num bombeiro, urrou na rua estraçalhada como há anos precisava fazer. Desgraçados!!!!!! Nós e eles!!! Seu grito animal fez outras formigas baldias acocorarem-se nuns escombros meio assustadas perto daquela flor. O Iraque não tinha acabado. Muitas vezes James Cohen tinha ficado na dúvida, não sabia se vivia ou se morria, se ficava em Nova Iorque ou se partia para o outro lado da ponte, da cidade, do mundo, se deixava de vez a esposa insuportável, mas matar formigas nunca tinha matado nem mataria, podia até ser médico de formigas, pensou, e a lembrança de Salomé comoveu seu coração devastado. Sentou-se no chão ao lado da poça em que Mohamed se esvaía e rabiscou depressa um bilhete, Salomé já estava de volta à praia natal perto de Guantânamo, desfazia a mala ao ouvir a notícia do atentado pelo rádio desempoeirou o livro de poemas de Ernesto Cardenal e abriu-o ao acaso, encontrou a ode aos antigos toltecas que fundavam cidades cantando, se o mundo acabasse dali a alguns momentos ela morreria feliz e cantando, viu as formigas sob a mesa, caminhavam engraçadas, numa fila saltitante, a casa tinha ficado tantos meses fechada mas na solidão os rastros de açúcar se esconderam para surpreendê-la na volta, o rastro das pequenas peregrinas formou um coração na camada de pó, teriam passado por todas as dores planetárias antes de inscreverem sob a mesa aquele presságio e se aninharem sonolentas no seu lírico pote de mascavo bruto.
Salomé conectou o laptop e escreveu um breve e-mail para James Cohen, o médico norte-americano que tinha conhecido há poucos dias no congresso em Nova Iorque e que não saía de sua cabeça, de seu coração, de seu plexo solar: “O mundo está acabando, Dr Cohen. Gostaria de ir para Shangrilá comigo?”


imagem: (Rosy Road). keliz, Porto Rico. http://www.glitter-graphics.com/


Em memória de Loreta e Mohamed.

Trancado


Fê Farah


Torturando o tempo
Procurando a tampa
Triplicando a tralha
Temperando o vento
No teto de tule
Uma telha e uma tranca
No túnel um truque
Uma tulipa torta
Que trilha o troço
Trepa por troco
Troca o trilho
Destroça o treco
Pendura o trocadilho
Meu trilho, trilho
Meu troço, torturo
Minha telha, penduro
A tulipa, troco
No túnel, trepo.