15 de set. de 2006

Caminhos

Replicante Raquel

Ela desvencilhou-se dele a muito custo, deitou-se na cama e riu alto do seu ar sério, meio brava apertou pra trás o umbigo fazendo uma careta, ele puxou para cima o zíper do jeans muito justo, torcendo para enganchar no piercing e eles recomeçarem tudo aquilo, ela sempre o provocava com aqueles renitentes 9 quilos a mais que os doces perpetuavam na sua carne fogosa, gostava de guardar lá no fundo a lembrança grudenta das suas mãos viajando por seu corpo a noite toda e a levaria assim clandestina, inquietante, no forro da calcinha já um pouco engomada. Enfiou as botas mordendo os lábios, antes de saírem para o World Trade Center esmagou com prazer o corpo esmirrado de 5 formigas que deixavam o resto do bolo-mousse de chocolate que tinha comprado na doceira japonesa para comemorarem o 44o. aniversário de seu insólito e adorado marido, tinham chegado de Amsterdan há 2 dias, voltavam para o trabalho sem saber que nunca, nunca mais se beijariam. Mal tinham entrado no prédio e elas já começavam a descer, as formigas, intuitivas e vermelhas caminhavam depressa, nervosas, quase histéricas, desordenadas numa fila irregular, pressentiam o estrondo talvez e começaram a pular as escadas do 64o. andar para o 32o. se atropelando, quando o primeiro avião atingiu a primeira Torre elas foram carbonizadas no 37o. e não chegaram a esbarrar em Loreta Lee. Antes de saber da morte da filha caçula, Sarah Cohen ligou a televisão e caiu perplexa no sofá. O que era aquilo??? A Terceira Guerra Mundial??? Dali a um minuto detonariam a última bomba atômica como no filme “O Planeta dos Macacos”?? Nova York acabaria??? Trêmula, desesperada, telefonou aos gritos para a filha mais velha na Jamaica suplicando-lhe perdão. Cinco minutos depois Nova Iorque não tinha acabado. Sarah suspirou aliviada, logo depois bufou e arrependeu-se de ter sido piegas, recompôs-se, não admitiria que a filha provocasse a família com aquele deboche intolerável do romance com o cantor negro!! Discou novamente, para a Jamaica, vomitou toda a sua aspereza e deserdou a filha .Ficou sentada a manhã inteira no sofá arquitetando a vingança suprema contra o marido aparvalhado. Antes do meio-dia, 6 formigas decididas desceram da torta de maçãs à sua frente, atravessaram o lavabo, mergulharam nos restos sujos de papel higiênico na cesta abafada e voltaram para a torta. Sarah Cohen nem percebeu. Assim que soube da morte da filha sardenta no Wolrd Trade Center, James Cohen resolveu ser um dos médicos sem fronteira no Iraque, e também depois que viu aquele muçulmano esquálido jogado ali na calçada, escancarando confissões à desconhecida de suéter rosa que o amparava na poça de sangue, ele cantava, chorava e dizia que adorava cantar, Sempre adorei, não sei se canto ou se morro, a garganta de James Cohen travou de dor, o homem morria e a canção de ninar ancestral brotava como um bálsamo trágico de suas vísceras apunhaladas, lágrimas gordas escorriam, eram feitas de gergelim e sal grosso, Mohamed riu, seu canto foi mel sobre a tristeza da vida interrompida; e no Iraque, talvez já sabendo do destino do perfumista Mohamed em Nova Iorque, outras formigas tinham subido numa fila ordenada, caminhavam devagar e resolutas, quase más, invadiram o andar de cima da casa da família e atormentavam a avó chorosa no quarto, circundavam sua cama emoldurada daquela tristeza antiga de tantas perdas. Em Nova Iorque, James Cohen afastou-se um pouco, esbarrou num bombeiro, urrou na rua estraçalhada como há anos precisava fazer. Desgraçados!!!!!! Nós e eles!!! Seu grito animal fez outras formigas baldias acocorarem-se nuns escombros meio assustadas perto daquela flor. O Iraque não tinha acabado. Muitas vezes James Cohen tinha ficado na dúvida, não sabia se vivia ou se morria, se ficava em Nova Iorque ou se partia para o outro lado da ponte, da cidade, do mundo, se deixava de vez a esposa insuportável, mas matar formigas nunca tinha matado nem mataria, podia até ser médico de formigas, pensou, e a lembrança de Salomé comoveu seu coração devastado. Sentou-se no chão ao lado da poça em que Mohamed se esvaía e rabiscou depressa um bilhete, Salomé já estava de volta à praia natal perto de Guantânamo, desfazia a mala ao ouvir a notícia do atentado pelo rádio desempoeirou o livro de poemas de Ernesto Cardenal e abriu-o ao acaso, encontrou a ode aos antigos toltecas que fundavam cidades cantando, se o mundo acabasse dali a alguns momentos ela morreria feliz e cantando, viu as formigas sob a mesa, caminhavam engraçadas, numa fila saltitante, a casa tinha ficado tantos meses fechada mas na solidão os rastros de açúcar se esconderam para surpreendê-la na volta, o rastro das pequenas peregrinas formou um coração na camada de pó, teriam passado por todas as dores planetárias antes de inscreverem sob a mesa aquele presságio e se aninharem sonolentas no seu lírico pote de mascavo bruto.
Salomé conectou o laptop e escreveu um breve e-mail para James Cohen, o médico norte-americano que tinha conhecido há poucos dias no congresso em Nova Iorque e que não saía de sua cabeça, de seu coração, de seu plexo solar: “O mundo está acabando, Dr Cohen. Gostaria de ir para Shangrilá comigo?”


imagem: (Rosy Road). keliz, Porto Rico. http://www.glitter-graphics.com/


Em memória de Loreta e Mohamed.

3 comentários:

b.ponto disse...

... so se for agora!!

perdi o folego.
belo.
beijos
b.

Badá Rock disse...

Também não entendi.

Lia Noronha disse...

Muito intrigante a sua narração...Abraços carinhosos diretamente do meu Cotidiano.