15 de set. de 2006

Bushidô

Bruno Accioly


Embora empregasse uma força sobre-humana para não demonstrar a dor que sentia, seus olhos o traiam produzindo cascatas de lágrimas, em uma tentativa frustrada em diluir o mar de sangue que escorria por dentre o grosso piso de palha. No que o corpo pendia para o lado, concentrava a pouca força remanescente nas mãos machucadas, firmemente agarradas ao cabo da espada curta.

Procurava esvaziar a mente com o emprego de técnicas de meditação, mas uma música antiga tocada em harpa, pela sua avó quando ainda viva, ecoava longe em um tom constante. A neve espessa cobria as cerejeiras e os jardins suspensos de pedra, e sua brancura desgastada combinava com o arranjo de madeira negra que decorava a sala.

Sentia a lâmina fria transpor o quimono em seu dorso, enquanto uma pequena corrente de ar percorreria toda sua extensão e lhe ressecava as pontas dos dedos. Hiroshi inflou com dificuldade ambos os pulmões e, assim como seu pai antes dele, a conduziu com destreza milenar ao outro lado do abdômen, rasgando-o por completo e expondo, aos presentes à cerimônia, sua vida em detalhes; pura.

Dentes lascados rasgaram com ódio o lábio inferior, que sangrava para dentro da boca; porém, mantendo-a selada. Hiroshi não emitira som algum. Seu primo, posicionado logo atrás com a enorme espada sobre a cabeça, sentiu-se orgulhoso.

Enquanto tombava para frente, incapaz de manter retesados os músculos da coluna, Hiroshi observou sua esposa no fundo da sala – imóvel – e sorriu. A honra da família Saito havia sido preservada e seus membros poderiam, novamente, caminhar pelas ruas da pequena vila com a cabeça erguida; livres de falsas acusações.

Era fim do inverno no vale sob a montanha e o funeral chamou atenção, até mesmo, do senhor das terras. Sua esposa vestia seda pela última vez. Na primavera seguinte, o Shogunato se desfazia.

(Bushidô, que em japonês significa "o caminho do guerreiro", era um código de honra não-escrito e um modo de vida para os samurais (bushi), que fornecia parâmetros para esse guerreiro viver e morrer com honra.)

6 comentários:

Anônimo disse...

Fiquei arrepiada...
Adorei.

Beijos

Anônimo disse...

Que beleza impressionante.Vc escreve com HONRA.Este caminho jamais se dissolverá na Terra.Viva!!!

Anônimo disse...

Fascinante, cara! No melhor estilo oriental. Sútil e sublime.

Anônimo disse...

Paro e me pergunto: Como pode tamanho talento ainda estar sentado à uma mesa de escritório?
Fico feliz em ter o prazer de ler palavras tão sábias, delicadas, intrigantes..., mas triste de saber que nem todos podem apreciar tamanha intelectualidade. São pessoas como você que tornam os nossos mundos diferentes. Que mudam a nossa forma de pensar.
Muito Obrigada por ter entrado desta forma na minha vida.

Anônimo disse...

acho que eramos uma família japonesa na outra encarnação, irmãozinho, devido ao facínio que temos por esse povo.

e com todo o vigor da palavra:
honra!

hai
hai

bjs
bi

Anônimo disse...

Eu ainda descubro pq é que gosto tanto do seu jeito de escrever... Como pode? Entre autores tão bons é sempre o seu texto que julgo como o melhor! ( Não, não é mimo! rs)

Talvez seja a sua capacidade de contar de maneiras tão diferentes.

Irritantemente direto ou repleto de intertextualidade e "entre linhas", sempre causa!!!

Bjinho