13 de abr. de 2006

FORNO & FOGÃO - abril de 2006


Arroz de Braga com Frei

Lilly Rowan

Minha mãe não chegava a ser uma grande cozinheira. Grande cozinheira era a mãe da Maria Rosa, minha amiga mais próxima no ginásio e Normal. A mãe da Maria Rosa, que se chamava Rosa, era uma daquelas portuguesas de cara meio enfezada, boa pessoa mas carola e meio chatinha. Mas fazia um Arroz de Braga como nunca mais comi na vida:molhado no ponto certo, fumegante, semi-colorido com os temperos, o repolho, os pedaços de frango e paio se sobressaindo em meio ao verdinho das ervilhas. Claro que fazia uma bacalhoada fantástica também, mas minha tara era o Arroz de Braga.
Nos domingos em que a Maria Rosa dizia: “Hoje tem, quer almoçar em casa?”, mais do que depressa aceitava, que não sou boba nem nada. Mas tinha um porém: a Dona Rosa estava sempre convidando para o almoço um Frei chatíssimo, cujo nome me escapa agora, ainda bem novo e que para azar era meu professor de religião. Nunca fui com a cara dele, que por sinal não ia com a minha também e vivia me dando “pega” na aula. E eu, por meu lado, discordava de todas as opiniões que ele dava, pois dizia barbaridades como...ahh, isso é outra história, voltemos ao Arroz de Braga.
Pois gostava tanto do prato que, sem-vergonhamente, lá ia eu para a casa da amiga mesmo sabendo que o desafeto lá estava. E me comportava como um anjo mudo, pois morria de medo que ele falasse mal de mim para a dona da casa e esta me exorcizasse das amizades da filha. Me perdoe, Maria Rosa, até podia suportar o corte da amizade...mas perder o Arroz de Braga? Então ficava firme, dava até um sorriso hipócrita para o Frei, acompanhava a oração à mesa, dizia amém e já ia botando o prato à frente, me aproveitando do fato de ser “visita”, com prioridade para ser servida..
Na verdade era a segunda, porque primeiro vinha o lambeta do Frei, claro. E eu ficava olhando de rabo de olho para ele, com cara de “seu fila bóia, não tem vergonha?” – como se eu mesma não fosse meio penetra. E às vezes ele se dava conta de que eu o olhava, e me encarava como a dizer: “te afasta, Satanás”., mas não haveria olhar no mundo que me tirasse da frente daquele prato cheio e cheiroso. Não lembro mais o que foi do Frei depois de um ou dois anos, sei que saiu da cidade. Vai ver foi afastado como pedófilo, tinha uma cara estranha. Eta, língua...Na verdade, divaguei. Comecei dizendo que minha mãe não era uma grande cozinheira e o pensamento voou. Ia mesmo era contar que mesmo não sendo grande, era boa, e fazia algumas coisas que adorava, principlamente: 1- salada de grão de bico com paio; 2 - Nhoque feito em casa; 3 - esfihas receheadas. O Jaber que me perdoe, mas mesmo sendo, pra mim, a melhor esfiha de São Paulo, não é melhor que a da minha mãe. Dia de esfiha era uma festa: ela recobria a grande mesa da cozinha de farinha e eu e minhas irmãs “ajudávamos” a arrumar a massa e fechar as esfihas. Claro que as nossas saíam todas tortas, mas quem ligava? Quando saíam do forno, quentinhas e com aquele aroma delicioso, nos entupíamos. Com uma vantagem que não era pequena: não tinha Frei chato para aporrinhar
.

8 de abr. de 2006

Farinha e manteiga


Para Margallyne Viana

Hoje completava quarenta anos de casamento. Tímidos, honestos e trabalhadores quarenta anos. Ria quando ouvia que a sua descrição se encaixava perfeitamente no perfil das mulheres de antigamente. “Ah, se eles soubessem...”- pensava, enquanto enrolava os docinhos e dava as últimas instruções às empregadas e aos garçons contratados.
Ainda tentou dizer que não seriam necessários garçons, mas a família bateu o pé: eram muitos convidados e ela, um dos motivos da festa, não ia passar a noite toda de lá pra cá com uma bandeja na mão. Por fim, concordou, mas fez questão de barganhar a produção dos docinhos; não ia deixar a parte mais gostosa da festa nas mãos de uma empresa qualquer aí, quem sabe o que eles usavam na cozinha? E se os convidados passassem mal? A família concordou, em parte para acalmar os ânimos da teimosa, mas principalmente porque adorava os doces feitos por aquelas mãos.
Dentro da cozinha todos corriam de um lado pro outro, tentando agilizar os preparativos, que pareciam não acabar nunca. Mais leite, mais farinha, mais colheres, mais, mais.
Sentada na cadeira, ela enrolava calmamente os doces no fundo da mão: brancos, marrons, beges, enquanto sua mente voltava quarenta anos.
Era o começo de uma tarde, ela tinha acabado de abrir a doceria, quando um homem, smoking e cravo na lapela, vestido de noivo, por assim dizer, praticamente invadiu o estabelecimento.
Tinha saído de uma enorme limusine, como todas as limusines, mas isso ela não sabia, nunca tinha visto uma, quanto mais duas, pra comparar!
O homem entrou na loja aos prantos e pediu alguma coisa pra comer. Bem surpresa, ela separou o melhor doce que tinha e serviu-o. Logo na primeira garfada, como num passe de mágica, as suas lágrimas cessaram numa evidente cara de prazer. Um pouco evidente demais, talvez. De repente, o noivo começou a tremer levemente, como se acometido por um gentil surto de malária. Seus olhos se perderam nos dela e ele, retesando todos os músculos, pegou em sua mão, soltando um longo gemido da mais pura satisfação. Foi amor à primeira...mordida? Tenha sido o que fosse, o fato é que o homem deu a volta no balcão, ajoelhou-se e pediu a mão da mulher em casamento. Ela, meio sem entender porquê, aceitou. Talvez estivesse apaixonada, vai saber.
Ambos correram pra fora da loja. Ela, porém, lembrou-se de voltar pra deixar um rabiscado bilhete ao dono e colocar o cartaz de fechado.
O casamento foi o mais bonito que a cidade já viu. A família do noivo estava profundamente emocionada. Só estranharam um pouco a ausência da família da noiva.
Sentada na cadeira grande cozinha, ainda enrolando os doces, a senhora já não conseguia mais conter o riso, que só cessou quando os garçons começaram a olhá-la meio atravessado. Se ela não fosse uma mulher tão tímida, teria perguntando o porquê de um pedido de casamento tão brusco. Na verdade, não foram poucas as vezes em que a pergunta parou em sua boca, mas rapidamente foi embora ao toque da pele dele à noite, na cama.
Mas será que ele lhe responderia que se casou primeiramente por conveniência, já que a sua noiva verdadeira abandonou-o poucas horas antes do casamento, com um bilhete enfiado no anel deixado em cima do vestido? Provavelmente isso tenha perdido a importância depois da primeira noite, ou da primeira refeição.
Perdida em seus devaneios, a senhora largou os últimos doces e foi se arrumar, já estava ficando tarde e ela era um dos motivos da festa, ora bolas!
De repente, como um furacão, entra na cozinha um dos netos e rouba um doce. Ela, meio de brincadeira, dá com a colher de pau na cabeça dele.
- Se mande daqui, danado! E vá lavar essa mão antes de mexer nos doces! – diz, num sorriso.
O neto ri também, esfregando de leve a mão na cabeça e vai embora, com o doce na boca.
Como o menino reagiria se soubesse que a sua avó nunca decorou os nomes dos netos, ou mesmo dos filhos, ou dos sogros? Vem por outra esquecia mesmo o do próprio marido.
Por fim, a doceira espantou as suas próprias perguntas, sorrindo com os braços cruzados; tinha aprendido, com o tempo, que algumas coisas é melhor deixar como estão. Ou como são.
Ben Iamin

7 de abr. de 2006

Mema


Ro Druhens

Minha mãe fazia pão.

Sovava a massa como quem enfurecida e louca se entrega ao guerreiro vencedor.

Quando a massa repousava sobre o branco mármore, minha mãe cantava.
E cantava como quem entorpecida e rouca se entrega ao herói iconoclasta.

Quando cumprido o tempo de repouso, minha mãe trançava.
E trançava como quem enluarada e nua se entrega ao primeiro amor.

Quando trançado o pão, ela o cobria.
E cobria como quem, trêmula e com frio, se entrega.

E o açúcar sobre o pão trançado tinha o brilho de todas as lágrimas. E o creme amarelo sobre o pão trançado tinha a cor de todas as perdas. E o cheiro do pão trançado corrompia todos os perfumes, exalava seus quereres. O de ir além. O de não ficar. O de jamais ser.

Minha mãe fazia pão e descansava no sétimo dia como se esperasse pela recriação da vida, pela ceia dos justos.

Minha mãe fazia pão e trançava sua vida.
Minha vida.

Banquete


Alexandre A. Abud

Os sonhos sempre mexeram com seu cotidiano. Noite passada tinha sonhado que chorava na cozinha e, otimista que era, não se imaginou abandonada nem preterida nas coisas do coração. Pelo contrário, pensou em cozinhar. Cozinhar com amor, com entrega, com o coração. Cozinhar com tamanha paixão que se pudesse faria algo refogado em seu próprio sangue. Nem notou que o choro era motivado pelo delicado e caprichoso corte de finas rodelas de cebola. Imaginou-se de roupas íntimas apenas, cozinhando com amor para um grande amor, mesmo que esse alguém não existisse. Cozinhar com tanta paixão como aquela que sentia só poderia resultar em algo igualmente grandioso.Tomou um longo banho. Prendeu os longos cabelos vermelhos no alto da cabeça. Passou um batom que ressaltava ainda mais seus carnudos e rosados lábios. Um leve vestido sem nada por baixo seria perfeito para aquela tarefa. Queria que suas entranhas escolhessem os ingredientes para o banquete que pretendia preparar. Dirigiu-se à feira do bairro, onde os cheiros, sons e sensações invadiriam cada poro de seu corpo.Tomada por uma força sobrenatural e sem o menor controle sobre o que fazia passou a escolher os ingredientes. Ou melhor, sua carne passou a selecioná-los. Primeiro pimentões. Apalpou os amarelos e cheirou-os. Depois os vermelhos, com as duas mãos, quase os levando de encontro ao rosto, tamanha a vontade de lambê-los. Em seguida pepinos. Suas pernas tremiam à medida que os escolhia. Inicialmente os mais finos e curtos e depois os grossos e longos. Comprou todos, ainda que não os usasse na elaboração do cardápio. Sem pensar pegou uma enorme caixa de morangos. Outra de uvas e uma porção de carambolas. Queria cheiros, queria texturas, queria tudo. Seu corpo urgia por aquilo. Flutuava entre as barracas como uma divindade. Ouvia os gritos dos vendedores como se fossem alucinações. Sentia que o mundo girava ao seu redor. Escolheu ostras grandes e pediu, imperativa, com uma só palavra, que o vendedor abrisse uma ali mesmo. Provou lascivamente e em seguida limpou a boca com as costas da mão. Sujou-a com o resto do batom e a salgada água da ostra. Sentiu-se ainda mais selvagem. Soltou os cabelos por sentir que nada poderia detê-la naquele momento. Tirou os sapatos também, jogando-os na sacola displicentemente. Agora queria frutas secas. Experimentou tâmaras, passas, figos e ameixas. Comprou nozes, amêndoas e castanhas. Na banca de flores comprou amores-perfeitos e um saco de terra preta. Tinha vontade de comê-la, tão grande o frenesi que a tomou de assalto naquela manhã. Sentou-se no chão, de pernas abertas e enfiou suas lindas mãos no saco de terra para revirá-la, com desleixo e desapego. Por pouco não a esfregou em seu corpo. Queria sentir a energia da terra, queria a textura, o cheiro. Enlouquecida. Os demais freqüentadores desviavam-se dela, principalmente as mulheres. Seu olhar louco e possuído as assustava. Aos homens nem tanto, pois era patente tratar-se de alguém possuída completamente por um desejo que ia além do sexual. Aquilo era amor, aquilo era fogo, aquilo era uma mulher enlouquecida, desejosa pelo choro, pela vida e por um amor que a acompanhasse naquele banquete dos sentidos. Chegou em casa, cozinhou e adormeceu, encolhida no canto da cozinha, ao lado do fogão, embriagada por sua aventura matinal e entorpecida pelo desejo do desconhecido.

6 de abr. de 2006

Domingo à noite


Branco Leone
Pôs a fatia de pão preto na frigideira onde a manteiga já havia derretido, baixou o fogo e olhou para o lado, em busca de um prato qualquer. Viu-os todos no escorredor, ao alcance de um passo e meio, mas não viu as canecas que precisava para o leite. Na cuba da pia, as quatro cheias de água não-limpa, para não dizer água suja, que não seria, era apenas água com o resto muito diluído do último café com outro leite.
Cobriu a frigideira com uma tampa côncava que não tocava o pão e, como sempre, imaginou como seria estar no lugar do pão, entre tampa e frigideira, a concha escura e cada vez mais quente, à semelhança de um ginásio onde a quadra fosse a fatia de pão fritando na manteiga. Deu passo e meio em direção à pia e se pôs a lavar uma caneca. Lembrava-se de quando Eloísa as dera, ela tinha muitas e separou quatro para ele, um presente entre tantos outros, motivados pela casa nova. Daí a dias faria dois anos.
Lavou a que seria apenas uma caneca, não a primeira porque não tinha intenção de lavar as outras, colocou-a no escorredor, ao lado dos pratos e olhou a frigideira, ouvindo-a, e ela continuava a chiar calmamente na fritura, informava que havia tempo para se lavar as outras.
Apanhou a segunda, esvaziou-a e refez os movimentos de ainda agora, os dedos por dentro, empurrando a bucha pelos cantos, uma esfregada mais forte pelas bordas, uma passada pelo lado de fora para cumprir protocolos, a bucha posta de lado, a torneira aberta para o enxágüe, um, dois, três giros na caneca inclinada sob o fio d'água, a torneira fechada e a mão esquerda conduz a caneca em direção ao escorredor e lhe escapa a porcelana lisa sai do alcance da mão esquerda escorrega como caroço de melancia apertado entre o polegar e o indicador e sai girando lentamente como ainda agora girava sob o fio d'água mas agora sem mãos que a conduzam e ela gira devagar e vai indo em direção ao chão ele ainda teve tempo de esboçar um movimento que salvasse a caneca e pensa que havia lido em algum lugar onde seria havia lido que os cacos de um copo ao se partir saem do ponto de colisão a mais de dois mil quilômetros por hora e que havia pensado como se mede semelhante idiotice quem se importa a qual velocidade partam cacos? e percebe-se o peso e a densidade da porcelana durante a queda a caneca cilíndrica branca e brilhante girando e a cada volta expondo a asa girando como um satélite em direção ao chão e ele se entorta ainda mais não estava em boa posição para alcançá-la mas se entorta para salvá-la salvar o chão dos cacos deus sabe onde chegarão a dois mil e poucos quilômetros por hora e a caneca bate no chão e se espatifa, não em dois mil pedaços, nem a dois mil por hora. É agora um grupo de cinco ou seis grandes cacos mais a miudeza de uma farinha cortante, tudo dentro de um círculo de dois palmos de diâmetro.
Curvado, mão no joelho, olha os cacos e pensa, dois anos loucos, dois anos sem a festa de inauguração prometida em troca das canecas e outros presentes, o apartamento ainda sem pintura, a vida começava a mudar de novo, levada por marés que ele não conseguia sequer supor o ritmo, dois anos sem quebrar uma caneca sequer, e ele se esforçava agora para se lembrar de qual mulher seria a boca que havia se encostado pela última vez naquela, agora virada em cacos, e desejou que o pé dessa mulher pudesse ter estado por debaixo da caneca agora mesmo na hora da queda. Haveria de ter poupado a caneca, e dado à mulher o que ela merecia, fosse qual fosse.
Cremava o pão na frigideira, preto. Quis estar no lugar dele.