6 de abr. de 2006

Domingo à noite


Branco Leone
Pôs a fatia de pão preto na frigideira onde a manteiga já havia derretido, baixou o fogo e olhou para o lado, em busca de um prato qualquer. Viu-os todos no escorredor, ao alcance de um passo e meio, mas não viu as canecas que precisava para o leite. Na cuba da pia, as quatro cheias de água não-limpa, para não dizer água suja, que não seria, era apenas água com o resto muito diluído do último café com outro leite.
Cobriu a frigideira com uma tampa côncava que não tocava o pão e, como sempre, imaginou como seria estar no lugar do pão, entre tampa e frigideira, a concha escura e cada vez mais quente, à semelhança de um ginásio onde a quadra fosse a fatia de pão fritando na manteiga. Deu passo e meio em direção à pia e se pôs a lavar uma caneca. Lembrava-se de quando Eloísa as dera, ela tinha muitas e separou quatro para ele, um presente entre tantos outros, motivados pela casa nova. Daí a dias faria dois anos.
Lavou a que seria apenas uma caneca, não a primeira porque não tinha intenção de lavar as outras, colocou-a no escorredor, ao lado dos pratos e olhou a frigideira, ouvindo-a, e ela continuava a chiar calmamente na fritura, informava que havia tempo para se lavar as outras.
Apanhou a segunda, esvaziou-a e refez os movimentos de ainda agora, os dedos por dentro, empurrando a bucha pelos cantos, uma esfregada mais forte pelas bordas, uma passada pelo lado de fora para cumprir protocolos, a bucha posta de lado, a torneira aberta para o enxágüe, um, dois, três giros na caneca inclinada sob o fio d'água, a torneira fechada e a mão esquerda conduz a caneca em direção ao escorredor e lhe escapa a porcelana lisa sai do alcance da mão esquerda escorrega como caroço de melancia apertado entre o polegar e o indicador e sai girando lentamente como ainda agora girava sob o fio d'água mas agora sem mãos que a conduzam e ela gira devagar e vai indo em direção ao chão ele ainda teve tempo de esboçar um movimento que salvasse a caneca e pensa que havia lido em algum lugar onde seria havia lido que os cacos de um copo ao se partir saem do ponto de colisão a mais de dois mil quilômetros por hora e que havia pensado como se mede semelhante idiotice quem se importa a qual velocidade partam cacos? e percebe-se o peso e a densidade da porcelana durante a queda a caneca cilíndrica branca e brilhante girando e a cada volta expondo a asa girando como um satélite em direção ao chão e ele se entorta ainda mais não estava em boa posição para alcançá-la mas se entorta para salvá-la salvar o chão dos cacos deus sabe onde chegarão a dois mil e poucos quilômetros por hora e a caneca bate no chão e se espatifa, não em dois mil pedaços, nem a dois mil por hora. É agora um grupo de cinco ou seis grandes cacos mais a miudeza de uma farinha cortante, tudo dentro de um círculo de dois palmos de diâmetro.
Curvado, mão no joelho, olha os cacos e pensa, dois anos loucos, dois anos sem a festa de inauguração prometida em troca das canecas e outros presentes, o apartamento ainda sem pintura, a vida começava a mudar de novo, levada por marés que ele não conseguia sequer supor o ritmo, dois anos sem quebrar uma caneca sequer, e ele se esforçava agora para se lembrar de qual mulher seria a boca que havia se encostado pela última vez naquela, agora virada em cacos, e desejou que o pé dessa mulher pudesse ter estado por debaixo da caneca agora mesmo na hora da queda. Haveria de ter poupado a caneca, e dado à mulher o que ela merecia, fosse qual fosse.
Cremava o pão na frigideira, preto. Quis estar no lugar dele.

5 comentários:

Anônimo disse...

Beijo, meu Branco, meu melhor agradecimento. Ro

Anônimo disse...

A queda da caneca foi estroboscópica. Sensacional. Abraço.

Anônimo disse...

O melhor desse trem aqui é que ele é cada dia melhor. Pena que as companhias............. Muito sutil esse texto Branco, muito.

Márcio disse...

É triste quando cremar o pão é o máximo que podemos fazer...

Anônimo disse...

Que bom voltar a te ler, Branco. É sempre com gosto que o faço. Beijo