8 de abr. de 2006

Farinha e manteiga


Para Margallyne Viana

Hoje completava quarenta anos de casamento. Tímidos, honestos e trabalhadores quarenta anos. Ria quando ouvia que a sua descrição se encaixava perfeitamente no perfil das mulheres de antigamente. “Ah, se eles soubessem...”- pensava, enquanto enrolava os docinhos e dava as últimas instruções às empregadas e aos garçons contratados.
Ainda tentou dizer que não seriam necessários garçons, mas a família bateu o pé: eram muitos convidados e ela, um dos motivos da festa, não ia passar a noite toda de lá pra cá com uma bandeja na mão. Por fim, concordou, mas fez questão de barganhar a produção dos docinhos; não ia deixar a parte mais gostosa da festa nas mãos de uma empresa qualquer aí, quem sabe o que eles usavam na cozinha? E se os convidados passassem mal? A família concordou, em parte para acalmar os ânimos da teimosa, mas principalmente porque adorava os doces feitos por aquelas mãos.
Dentro da cozinha todos corriam de um lado pro outro, tentando agilizar os preparativos, que pareciam não acabar nunca. Mais leite, mais farinha, mais colheres, mais, mais.
Sentada na cadeira, ela enrolava calmamente os doces no fundo da mão: brancos, marrons, beges, enquanto sua mente voltava quarenta anos.
Era o começo de uma tarde, ela tinha acabado de abrir a doceria, quando um homem, smoking e cravo na lapela, vestido de noivo, por assim dizer, praticamente invadiu o estabelecimento.
Tinha saído de uma enorme limusine, como todas as limusines, mas isso ela não sabia, nunca tinha visto uma, quanto mais duas, pra comparar!
O homem entrou na loja aos prantos e pediu alguma coisa pra comer. Bem surpresa, ela separou o melhor doce que tinha e serviu-o. Logo na primeira garfada, como num passe de mágica, as suas lágrimas cessaram numa evidente cara de prazer. Um pouco evidente demais, talvez. De repente, o noivo começou a tremer levemente, como se acometido por um gentil surto de malária. Seus olhos se perderam nos dela e ele, retesando todos os músculos, pegou em sua mão, soltando um longo gemido da mais pura satisfação. Foi amor à primeira...mordida? Tenha sido o que fosse, o fato é que o homem deu a volta no balcão, ajoelhou-se e pediu a mão da mulher em casamento. Ela, meio sem entender porquê, aceitou. Talvez estivesse apaixonada, vai saber.
Ambos correram pra fora da loja. Ela, porém, lembrou-se de voltar pra deixar um rabiscado bilhete ao dono e colocar o cartaz de fechado.
O casamento foi o mais bonito que a cidade já viu. A família do noivo estava profundamente emocionada. Só estranharam um pouco a ausência da família da noiva.
Sentada na cadeira grande cozinha, ainda enrolando os doces, a senhora já não conseguia mais conter o riso, que só cessou quando os garçons começaram a olhá-la meio atravessado. Se ela não fosse uma mulher tão tímida, teria perguntando o porquê de um pedido de casamento tão brusco. Na verdade, não foram poucas as vezes em que a pergunta parou em sua boca, mas rapidamente foi embora ao toque da pele dele à noite, na cama.
Mas será que ele lhe responderia que se casou primeiramente por conveniência, já que a sua noiva verdadeira abandonou-o poucas horas antes do casamento, com um bilhete enfiado no anel deixado em cima do vestido? Provavelmente isso tenha perdido a importância depois da primeira noite, ou da primeira refeição.
Perdida em seus devaneios, a senhora largou os últimos doces e foi se arrumar, já estava ficando tarde e ela era um dos motivos da festa, ora bolas!
De repente, como um furacão, entra na cozinha um dos netos e rouba um doce. Ela, meio de brincadeira, dá com a colher de pau na cabeça dele.
- Se mande daqui, danado! E vá lavar essa mão antes de mexer nos doces! – diz, num sorriso.
O neto ri também, esfregando de leve a mão na cabeça e vai embora, com o doce na boca.
Como o menino reagiria se soubesse que a sua avó nunca decorou os nomes dos netos, ou mesmo dos filhos, ou dos sogros? Vem por outra esquecia mesmo o do próprio marido.
Por fim, a doceira espantou as suas próprias perguntas, sorrindo com os braços cruzados; tinha aprendido, com o tempo, que algumas coisas é melhor deixar como estão. Ou como são.
Ben Iamin

3 comentários:

Anônimo disse...

Obrigada, Benzinho, mais um belo texto. beijos

Anônimo disse...

Li como bombocado fosse/
este texto bem doce.

:)

Abraços.

Anônimo disse...

Ben, quando é que voce vai deixar de me surpreender? beijo