13 de ago. de 2006

Não Sei Quanto a Vocês


Pedro Rodrigues


- Não sei quanto a vocês, mas eu poderia devorar uma bela vitela inteira.
- Concordo, já passamos umas boas duas horas perambulando nestas masmorras, vamos embora.
- Não são masmorras, o local é até aconchegante para uma construção tão antiga.
- Masmorras... Quem sabe não podemos encontrar alguma? Vamos inspecionar pelo lado de fora, buscar por alçapões. Por que parar agora a busca pelos segredos e mistérios que se escondem nestas pedras anciãs?
- Que segredos e mistérios? É apenas uma capela antiga, de pedra. E você não estava agora mesmo falando em ir almoçar?
- A vitela que nos espere, chegamos até aqui, não é sempre que encontramos uma edificação desconhecida e misteriosa como esta.
- O que há de misterioso, é uma simples capela medieval do período românico.
- Românico? Veja estes entalhes nas colunas do saguão, estes padrões não surgirão na arquitetura européia até o período gótico.
- Pré-gótico.
- Que seja, são ao menos cinco séculos de diferença.
- E a altura da nave central, também não condiz com o período românico.
- Vamos com calma, não pode falar em nave de uma capela.
- Como você pode afirmar que é uma capela e não uma igreja? Veja o tamanho deste saguão!
- Não havia me dado conta disto, vocês notaram como ela parece bem maior aqui de dentro?
- Hm? É efeito da pintura. Provavelmente...
- Eu sou grata por não poder ver os afrescos do teto, parecem horripilantemente disformes.
- Efeito dos elementos e do tempo.
- E você ainda não me convenceu de que se trata de uma capela, pode bem ser uma catedral.
- Ora, também não exagere!
- Não há espaço para fiéis, certamente trata-se de um local de devoção solitária.
- Onde algum cavaleiro pode ter passado noites em claro rezando, preparando-se para a batalha.
- Se a construção já não tivesse sido abandonada muitos anos antes de surgir sequer o conceito de cavalaria.
- Não vou discutir com você. Mas parece, de qualquer modo, que já exploramos muito bem todos os três aposentos, não acham?
- Quatro.
- Como?
- Quatro aposentos.
- É mesmo? Acho que contei errado.
- Contou errado de um a quatro?
- Oras, o que há de mal, um erro bobo, não pegue no meu pé.
- Então vamos à vitela?
- Depois, vamos procurar as masmorras.
- Não há masmorras.
- Como pode ter certeza?
- Vamos para fora, por favor, estou me sentindo um tanto enclausurada.
- Nesta amplidão?
- Deixe de ser chato, vamos sair e procurar as masmorras.
- Oh, bem, vamos sair de qualquer modo.
- E Harry?
- Está nos aguardando no carro.
- Ele não quis vir?
- Não acredito que Harry deixaria esta oportunidade. Não é do seu feitio desprezar mistérios e emoções.
- Bom, ele não veio, certo? Não está aqui, como podemos todos bem ver.
- Mas você se lembra de ter ficado no carro?
- Onde mais pode estar? Vamos vocês dois, vamos embora, acho que estou com dor de cabeça. A vitela.
- Espere. Alguém concretamente se lembra de Harry ter ficado do lado de fora?
- Se ele não veio é porque ficou, qual o grande mistério sobre isto?
- Mas... Ele não veio?
- Oras isto está ficando cansativo, ele não está aqui, está? Então é porque ficou!
- Ou se perdeu.
- Em três cômodos?!
- São quatro cômodos, você mesmo me alertou.
- Hm... Sim, sim, não interessa, é impossível se perder.
Harry socava paredes impossíveis em passagens inexistentes.
- Escutem, vocês se lembram do momento exato em que entramos aqui?
- Sim, avistamos a construção ao longe, em um monte muito verde, nos interessamos em saber o que era, pois não constava no mapa. Nos aproximamos com o carro, estacionamos ao lado do bosque de ciprestes...
- E?
- E entramos, todos nós.
- Nós três.
- Eu lembro de olhar para as gárgulas da entrada e apressar meus passos. Senti calafrios sendo observada por aquelas sinistras evocações pétreas de pesadelos ancestrais.
- Não colocaria em tão belas palavras, mas senti também a necessidade de me apressar adentro da porta.
- E Harry?
- Ficou no carro, entramos apenas nós três!
- Não! Pense bem, foi ele que saiu correndo do carro e nos esperou embaixo do relevo da porta, fazendo uma ridícula careta, imitando a gárgula.
- Você pode ter razão...
- Não, isto foi hoje de manhã, em outro local.
- Ainda é manhã, e esta foi a primeira parada do dia. Não é possível que se esqueceram, foi a menos de uma hora.
- Só isso? Pareceu que estávamos aqui quase o dia todo...
- Espere, Harry não voltou depois e saiu para o gramado? Ele se apressou, entrou quase correndo assim que nos aproximamos...
- E disse: “Nenhum medo pelo desconhecido!”
- Haha, foi sim, Harry é tão divertido.
- Mas, se ele entrou, como não está aqui?
- Ele saiu de novo.
- Não, ele definitivamente não saiu de novo.
- Mas...
- Você se lembra dele ter saído?
- Acho que sim. Talvez... Oras, se ele entrou e não está aqui, certamente saiu!
- Mas você está supondo, não se lembra de verdade.
- Não, não me lembro. Também não lembro de Harry ter vindo conosco. Acho que não...
- E lembra-se dele ter ficado no carro?
- Onde mais pode ter ficado?
- É isto que estou dizendo, não sabemos se ele está ou não aqui dentro, estamos fazendo suposições, mas não conseguimos lembrar do que aconteceu a menos de uma hora.
O grito agudo lancinou os tímpanos dos homens. Por que mulheres gritam assim?
- O que foi?
- A tapeçaria, eu, a figura. Eu observava a tapeçaria e ela, ela... Me encostou, o desenho da tapeçaria estendeu a mão e me agarrou!
- Qual tapeçaria?
- Aquela com a figura de um rei sentado.
- Não há nada parecido com uma tapeçaria ou figuras humanas, apenas as cortinas apodrecidas e rotas. Sem imagens, apenas padrões mouriscos.
- Você disse que a tapeçaria a agarrou?
- Isto não importa, não há tapeçaria, ninguém agarrou seu braço.
- Vamos embora, vamos embora, por favor. O toque frio daquelas mãos, por favor, vamos embora. Não quero mais ouvir, não quero mais, por favor!
- Ouvir o que, o que está te atormentando?
- Chega, certo, chega! Vamos embora, a moça está em nervos, por favor, seja cavalheiro e respeite.
- Sim, certo, me desculpe. Vamos prontamente, Harry deve estar nos esperando com a vitela.
- Harry?
Os três dobraram uma esquina. Uma mesma e única esquina, em direção à saída que estava – como não repararam? – à sua frente.


(Leia o conto completo no arquivo em word, 'blueprint' - link na barra lateral)

3 comentários:

Anônimo disse...

Seu texto evoca o teatro e constrói aos poucos um mistério quase desesperado.

Anônimo disse...

Também faz pensar que não estamos quase nunca no mesmo lugar os que estamos "juntos".

Anônimo disse...

Esta revista melhorou muito!!! belo texto.