2 de jun. de 2006

A primeira


Bruno Accioly
Eram tempos difíceis, de concorrência feroz, onde somente os astutos sobreviviam. A vida inteira de trabalho honesto não havia lhe rendido fruto algum e, enquanto o suor escorria frio de suas costas pelos pequenos sulcos do encosto, culpava-se por ter perdido tempo demais planejando. “A molecada não tem esse problema... age como que por instinto”, refletiu.

Encolhido sobre a poltrona de veludo vermelho, ocultava-se da ingênua oferta da lua que, refletida pela janela aberta, iluminava parte da cama a sua frente e a reprodução de uma obra de Blake na parede. A mão esquerda tremia quase que imperceptivelmente sobre um tecido gasto, denunciando leve efeito colateral decorrente da abstinência de nicotina – “quarenta e oito anos, exatamente!” Passou os dedos por entre os cabelos grisalhos escorridos sobre a fronte e suspirou baixo, evitando que o som comprometesse, de alguma forma, a composição à sua frente. A jovem, objeto de seus mais recentes pensamentos, repousava imaculada sobre lençóis amarelados de algodão pelos quais escorria, lentamente, sua doce inocência. Seus pequenos pés repousavam paralelos, envoltos por meias finas em uma tentativa fútil de esconder o trato cruel das aulas de ballet. Estrias suaves desenhavam na pele ramos outonais sobre nádegas vigorosas, enquanto uma pequena vela à cabeceira explodia seus fachos ousados sobre lindos seios em desenvolvimento. Desprotegida dos perigos noturnos, sua áurea de ingenuidade exalava uma rara sensualidade entre orifícios ocultos.

Sentado, experimentava entre as pernas o fracasso da sua masculinidade. Sonhara com essa noite inúmeras vezes a ponto de calcular, com precisão cirúrgica, todos os detalhes sórdidos em um lado ignorado de seu cérebro; que, e apenas poucos estudiosos concordavam, estava diretamente relacionado ao inconsciente instintivo – “o animal oculto”, diziam.

Imagens sem cores do doce perfume juvenil fluía por entre suas veias, assim como do calor da respiração feminina ofegante aquecendo seu torso magro e sem pêlos. Era a primeira vez que fazia isso e, embora extremamente nervoso, não sentia medo daquela pequena parte de seu corpo que gostaria de compartilhar a nervosa pressão de sangue que fluía ao penetrar sua ternura imatura de menina; afogando para sempre a divindade em um mar coagulado de emoções. Mas falhou! E esse fracasso franzido sobre olhos semicerrados lhe angustiava, extirpando de seu coração as últimas pregas de esperança.

Ele levantou o velho esqueleto com determinação. Ir embora nesse momento não traria solução alguma ao seu problema; talvez ainda houvesse chance de tirar proveito da situação. Aproximou-se da forma estática que cintilava sobre o tálamo e arriscou lhe tocar a pele úmida e macia. Pôde sentir uma intensa fragrância do mel de amêndoas queimadas. Os longos fios da cabeleira negra descendiam em curva por detrás do travesseiro, desmoronando em volume sobre o chão de madeira. O sangue ainda estava quente e encontrava dificuldades em deixar a ferida; que acomodava sozinha dezesseis centímetros de uma lâmina medíocre. “Esse contrato me renderia uma grana boa”, lamentou.

Procurou nas gavetas por qualquer objeto que pudesse levar consigo e converter em, pelo menos, algo quente para saciar sua fome; mas parou logo, enjoado com a sensação de, como os abutre, ter de sobrevoar a vítima apodrecida. Aceitou esse serviço como a única forma, embora humilhante, de continuar lutando. Era pra ser simples: chegar, matar e sair pra coletar a grana; sem perguntas! Mas a idade e o rigor na disciplina, até para algo tão extremo à sua integridade moral, lhe tomou tempo demais. Tempo que não dispunha. Soprou a vela, ensaiou o sinal da cruz e, cabisbaixo, saiu com cautela para não alterar a cena do crime. Afinal, já haviam pegadas ensangüentadas e impressões digitais suficientes: “Esses moleques apressados! No final, acabam metendo sempre os pés pelas mãos.”

8 comentários:

Anônimo disse...

Obrigada, Bruno, seja muito bem-vindo.Belo texto.

Márcio disse...

Ui...Beleza de texto, cara, parabéns!

Anônimo disse...

Adorei, adorei, adorei....
Mas coitada da bailarina... o que ela fez pra merecer morte tão cruel?

Beijos

b.ponto disse...

... haha ... deve ter errado um passe na danca dos cisnes...

bj

Anônimo disse...

Achei o tempo todo que o velhinho ia meter a piroca. Fiquei até excitado. No final, pensei: hmmm, será que eu curtiria um cadáver?? hua, hua, hua...

Anônimo disse...

Não fui eu, não fui eu que escrevi essa pérola! Que merda de inveja. Bem vindo B.!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Bruno, você e o Ben juntos devem formar o serial killer mais talentoso que já existiu. Que nunca se unam...! Beijo

Anônimo disse...

Foi vc e fez muito bem.