20 de fev. de 2006

Revisita


“Era uma casa grande, de portão branco. Uma que tinha um jambeiro na frente. A molecada derrubava jambo na pedrada. Minha mãe ficava danada. Uma que parecia sempre ter cheiro de grama molhada. Vivia de cigarra quebrada, a gente tinha que bater palmas na porta chamando, "ô de casa, ô de casa”. De manhã bem cedinho, o sol se enfiava por baixo da minha cortina e o cheiro do café de Elizete vinha devagarinho pra dentro de meu nariz, só você vendo. Ninguém entendia como é que eu nunca acordava de mau-humor. Mas me diz, mau-humor com o café de Elizete? Com o chiado gostoso da vassoura da minha mãe varrendo o alpendre? Espere aí, moço, por favor, faça um esforço. Olhe só: era na rua da bodega de Seu Naldo. Eu mais meus irmãos numa briga danada quando lá na casa, mamãe precisava de linha, de agulha, de farinha. Porque sempre sobrava um troquinho, né? Já notou como dinheiro em mão de menino rende? Aí pronto, a gente voltava transbordando de chiclete, confeito, o diabo! Cada mão assim ó, cheia! E ainda apostando corrida. Na época podia, nera igual hoje não. Tinha tão pouco carro na rua. Lembra? A gente bebia água de rio, moço, andava de pé no chão, corria de assombração, via tão pouca televisão...Lembra não? Ninguém morria, ninguém era seqüestrado, e se pegava doença, era de criança...Pertinho da escola, moço! A gente amarrava os livros numa tira de couro. A professora era braba comigo porque eu nunca prestava atenção. Nem podia! Prestar atenção à conta, a sinal de mais e menos, quando tinha um ninho de bem-te-vi novinho, novinho, numa árvore bem na frente? Quando uma manga daquelas bem maduras se pendurava soltinha num galho? Vá agora não, meu amigo, por favor. Eu acordei de madrugada hoje. Agoniado, com uma coisa aqui no meu peito. Pensei em ligar pro médico. Mas a medicina dele ia resolver nada... Ainda se fosse um jambo, uma manga, caída na pedrada. Ah, moço, ainda se fosse uma xícara do café de Elizete! Tome outra. Por minha conta. Lembrou? Isso, moço. Essa, moço. Grande, moço. Grande moço! Acordei com uma agonia no peito, entrei no carro e me danei pra cá. Só você vendo. Mas vamo, moço. Me leve. Porque o meu mau é falta de lá. É falta de lar...
(...)
É o quê? Pode ser não, moço. Era uma grande, de portão branco, com cheiro de grama molhada e zuada de vassoura de piaçava. É não, moço. Era não, moço. Derrubada, moço? Por quê? Por quem? E faz tempo?...Eu sei.
(...)
A gente só pegava era doença de criança, moço. E bebia água de rio. Tome mais uma. Tome mais duas. Uma por mim, que eu já vou me embora. Sei não. Tirar esse sapato. Tomar banho de rio. Correr de assombração.
(...)
Voltar? Ah, meu Deus. Só rindo, né? Voltar pra onde, moço?”
Ben Iamin

2 comentários:

Anônimo disse...

Márcio, vc sempre me comove, que coisa, que coisa, que lindo, que bom! beijo

Anônimo disse...

O palavreado, a maneira de falar, as expressões que só o sotaque do nordeste poderiam criar estão aqui a dar o tom, mas sem exagero. Menino Márcio, vosmecê vai longe...