23 de jun. de 2006

Réquiem inacabado




Replicante Raquel

Rosena tinha o peito doído, remédio algum aplacava, Viuvão assim mesmo insistiu Deixa eu ajudar você, Rosena. Nessa hora doída Rosena dizia Sou filha de tarântula. Rosena picada de aranha e cobra. Rosena esculpida dentro de mim.Vejo-a assim um sumo de cedro escorrendo, passos fortes sobre o chão, veludo macio de saia esfregando o calor da coxa suada. Rosena pegava o bandolim e gritava coisas altas de paixão. Viuvão acudia balançando sais, o domingo hoje se estica feito elástico e couro de tatu, quem pintou essa estrela mais rubra?! Quem estendeu essa escada para o Céu?!! Juro que não pintei aquela nuvem, não fui eu, mas queria tanto ter feito, ah! É sempre o vento artesão.
Os descendentes hoje se reúnem, sonham motivos, forjam mentiras, inventam circunstâncias. Fazem dela o que bem querem. Não pode mesmo ser de outra forma. A boca enorme de Rosena está fechada para sempre. Não pode mais sorrir, reclamar de injustiça. Rosena está profundamente calada desde a crise de apendicite do carnaval de 1929. Hibernou, virou retrato. Está perpetuada no Museu da Imagem e do Som. Introduziu sons dodecafônicos no bandolim, enfeitou nossa árvore de mulheres. Mas na casa de Armanda é assunto que não pode ser tocado. Você puxou a avó, desgramada. Quem? Eu?????
Não há trégua. Igualzinha. É quando fazemos das nossas, chegamos ávidas, disfarçando, rondamos a galeria dos parentes com um ar sonso excitado. Queremos nos eximir? Culpá-la? Hoje quero adorá-la. Desenterrá-la com desvelo, sem desmanchar seus pecados. Quem tirou este retrato? Vocês não têm outro assunto?? Fui eu.
Queria ter sido. Rosena cavalgou nua na chuva, viveu na casa grande envidraçada que se entortava na ilha feito uma centopéia. Um dia ela e a filha encontraram perto da entrada o bicho cheio de pernas, Aninha era pequena, se agacharam e olharam, Rosena explicou abrindo a saia É assim uma coisa esquisita cheia de perna e desejo, feito mulher, minha filha, feito nós duas e todas. Aninha repetiu no colégio, vieram reclamar. Dêem-se ao respeito, senhores! Viuvão defendeu. Minha mulher é uma artista! Os filhos cresceram admirando. Tanto amor, tanta paixão. Por que nossa geração a perdeu? Não adianta olhar pro outro lado. Estou falando com você. Quantos anos será que ela tinha? Viuvão não podia saber, ela escondeu sempre a idade, talvez fosse mais velha que ele, tanta dama criada por governanta francesa na Capital da República, Viuvão escolheu a dos olhos. De onde será que ela veio? Filha de cigano? Era bruxa? Nunca vi olhos dessa cor, de orquídea da duna, violeta, alguém mexeu nesse aqui. Em mim também. Vão esconder até quando? Pra que tantas perguntas inúteis?!! Ninguém vai poder responder! Estas malucas fazem o que bem entendem com a história! Querem ser igual a Rosena. Se soubessem! Se soubessem! Coitado do bisavô. Armanda anda sem parar, bate nervosa o tapete, que vergonha, meu Deus, quanta dúvida grudada, terroristas, safadas, diabo de sangue mais forte, Armanda bufa, estremece, parece que reza Livrai-nos Senhor da fúria dos genes Amém. Acaricio o retrato, tanta dívida tecida. Alguém marcou esse esse aqui com o dedo. Vocês não lavam a mão antes de mexer em retrato??? Gente mais mal educada! Me marcaram com uma tatuagem na alma. Pronto. Ninguém mais mexe no álbum, vou trancar. Eu abri e gostei. Uma coisa assim esquisita cheia de perna e desejo, feito nós duas, Aninha, feito elas também e mais todas. Mesmo assim ainda não posso morrer. Quero mais.
Vocês roubaram uns retratos! Cadê? Onde está o bandolim da vó?! Eu quero tanto ele pra mim!!
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imagem: Kiss kiss kiss kiss........by bennystroller..Album: True Music from Budweiser.. Webshots. "Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved."

8 de jun. de 2006

Minha máxima culpa

Ben Iamin

“Não fui eu” - penso ao acordar, com a camisa ao avesso e um gosto amargo na boca.
“Não fui eu” - decido, erguendo as pernas doídas, abrindo e fechando os dedos levemente dormentes.
“Não fui eu” - assobio, lavando as mãos na pia sem nem ao menos olhar pra elas.
“Não fui eu” - esqueço, ao arrumar o apartamento transtornado, desvirando móveis, varrendo cacos, raspando marcas de unha na parede.
Não fui eu?
Não...
Não, não fui.
Eu?
Corro até o banheiro, ouvindo a frase latejar dentro da minha cabeça.
A cortina verde-água cobre a banheira. Posso ver que contorna um corpo.
Não?
Pé ante pé me aproximo, e, já em sua frente, afasto-a com uma mão direita trêmula.
Não, não fui eu.
Não

Nada
Lá.
Passo algum tempo olhando o fundo imaculado da banheira. Gostaria que minha consciência tivesse essa cor.
Corro até a sala, jogo-me no sofá e zapeio a televisão com o controle remoto.
Só então.
Se não fui eu, por que tenho tanto medo de descer até a garagem e checar a mala do carro?
Desligo a televisão num clique e respondo ao "boa noite" de Willian Bonner. Um boa noite carregado de julgamento, senhor Bonner? De ironia?
Não, meu caro.
Não fui eu.

2 de jun. de 2006

A primeira


Bruno Accioly
Eram tempos difíceis, de concorrência feroz, onde somente os astutos sobreviviam. A vida inteira de trabalho honesto não havia lhe rendido fruto algum e, enquanto o suor escorria frio de suas costas pelos pequenos sulcos do encosto, culpava-se por ter perdido tempo demais planejando. “A molecada não tem esse problema... age como que por instinto”, refletiu.

Encolhido sobre a poltrona de veludo vermelho, ocultava-se da ingênua oferta da lua que, refletida pela janela aberta, iluminava parte da cama a sua frente e a reprodução de uma obra de Blake na parede. A mão esquerda tremia quase que imperceptivelmente sobre um tecido gasto, denunciando leve efeito colateral decorrente da abstinência de nicotina – “quarenta e oito anos, exatamente!” Passou os dedos por entre os cabelos grisalhos escorridos sobre a fronte e suspirou baixo, evitando que o som comprometesse, de alguma forma, a composição à sua frente. A jovem, objeto de seus mais recentes pensamentos, repousava imaculada sobre lençóis amarelados de algodão pelos quais escorria, lentamente, sua doce inocência. Seus pequenos pés repousavam paralelos, envoltos por meias finas em uma tentativa fútil de esconder o trato cruel das aulas de ballet. Estrias suaves desenhavam na pele ramos outonais sobre nádegas vigorosas, enquanto uma pequena vela à cabeceira explodia seus fachos ousados sobre lindos seios em desenvolvimento. Desprotegida dos perigos noturnos, sua áurea de ingenuidade exalava uma rara sensualidade entre orifícios ocultos.

Sentado, experimentava entre as pernas o fracasso da sua masculinidade. Sonhara com essa noite inúmeras vezes a ponto de calcular, com precisão cirúrgica, todos os detalhes sórdidos em um lado ignorado de seu cérebro; que, e apenas poucos estudiosos concordavam, estava diretamente relacionado ao inconsciente instintivo – “o animal oculto”, diziam.

Imagens sem cores do doce perfume juvenil fluía por entre suas veias, assim como do calor da respiração feminina ofegante aquecendo seu torso magro e sem pêlos. Era a primeira vez que fazia isso e, embora extremamente nervoso, não sentia medo daquela pequena parte de seu corpo que gostaria de compartilhar a nervosa pressão de sangue que fluía ao penetrar sua ternura imatura de menina; afogando para sempre a divindade em um mar coagulado de emoções. Mas falhou! E esse fracasso franzido sobre olhos semicerrados lhe angustiava, extirpando de seu coração as últimas pregas de esperança.

Ele levantou o velho esqueleto com determinação. Ir embora nesse momento não traria solução alguma ao seu problema; talvez ainda houvesse chance de tirar proveito da situação. Aproximou-se da forma estática que cintilava sobre o tálamo e arriscou lhe tocar a pele úmida e macia. Pôde sentir uma intensa fragrância do mel de amêndoas queimadas. Os longos fios da cabeleira negra descendiam em curva por detrás do travesseiro, desmoronando em volume sobre o chão de madeira. O sangue ainda estava quente e encontrava dificuldades em deixar a ferida; que acomodava sozinha dezesseis centímetros de uma lâmina medíocre. “Esse contrato me renderia uma grana boa”, lamentou.

Procurou nas gavetas por qualquer objeto que pudesse levar consigo e converter em, pelo menos, algo quente para saciar sua fome; mas parou logo, enjoado com a sensação de, como os abutre, ter de sobrevoar a vítima apodrecida. Aceitou esse serviço como a única forma, embora humilhante, de continuar lutando. Era pra ser simples: chegar, matar e sair pra coletar a grana; sem perguntas! Mas a idade e o rigor na disciplina, até para algo tão extremo à sua integridade moral, lhe tomou tempo demais. Tempo que não dispunha. Soprou a vela, ensaiou o sinal da cruz e, cabisbaixo, saiu com cautela para não alterar a cena do crime. Afinal, já haviam pegadas ensangüentadas e impressões digitais suficientes: “Esses moleques apressados! No final, acabam metendo sempre os pés pelas mãos.”

1 de jun. de 2006

Estátua


Grimble

Desde que a viu pela primeira vez, o moço franzino ficava de guarda. Todos os dias, feito um poste, em frente à janela da moça de cabelos cor de fogo. Fizesse chuva ou sol, tempestades, trovões, frio ou calor, lá estava
ele sempre de olho na janela onde morava o fogo dos cabelos dela.

Os transeuntes, os vizinhos, no princípio todos estranharam aquela presença, aquele sujeito esquisito que não se mexia. Chegaram alguns inclusive a deixar cair umas moedas aos seus pés. Aos poucos, ficou
conhecido como "a estátua".

Não sentia fome. Alimentava-se do encantamento por que estava tomado. Sede, matava-a na chuva que escorria-lhe no queixo. Quando estiava, secavam-lhe os beiços.

Uma noite vazia de nuvens e de pessoas na rua, ele resolveu chamar a atenção da moça. Pegou uma pedra pequena e atirou-a na vidraça da janela. O efeito não foi o esperado: ao invés de fazer um barulhinho e apenas acordá-la ou chamar sua atenção, a pedra quebrou a vidraça. O barulho acordou a vizinhança, que veio desabalada olhar quem tinha feito aquilo. Reviraram tudo e não encontraram o autor daquele vandalismo. Foram dormir, desolados.

Nos pés da estátua do moço, uma mancha larga de urina do yorkshire da vizinha.

Fui ou não fui. Eis a questão.


Lilly Rowan
Era aniversário de um colega de trabalho.Puxa-saco, vira-casaca, melífluo. Já se nota, não gostava dele. E lá pelo meio da tarde entra porta adentro uma moça bonita, em altos brados, senta no colo dele, faz uma cena. Todo mundo olhando, sacando que era alguém contratada para aquilo. Vem o chefe, acaba com a farra, o colega púrpura de vergonha e do batom deixado pela atriz.
Dez minutos depois, sou chamada com outra colega, esta amiga do peito, à sala do chefe. Que nos recebe com um: “Bonito!!”. E nos acusa de ter preparado a farsa. Já ia dizendo indignada: “Não fui eu!”, quando olho para a cara da amiga. Fazendo cara de ingênua, a mão no peito, as pestanas batendo aflitas, dirige-se ao chefe: “Não fui eu, estou tão surpresa quanto você”. Calei-me. Recebemos um sermão e deixamos a sala. Fui logo dizendo a ela que estava na cara que tinha culpa no cartório. Ela jurou que só soube de tudo após o fuzuê, contado por quem armara a brincadeira. E que por sinal, ao saber do sabão que levamos, foi heroicamente se apresentar à chefia, tomar a bronca que lhe cabia. Enquanto discutíamos, no corredor, sobre o que tinha de fato ocorrido, a amiga me perguntou: “Mas por que você não se defendeu, se não sabia de nada?”. Sem a menor hesitação, respondi: “Porque quando olhei pra sua cara, nem eu acreditei que não éramos culpadas”.
Porque a coisa toda está aí. Se não se tratasse de um desafeto, não duvido que fizéssemos algo assim. Muitas vezes não fui eu, mas podia ter sido.Recentemente, levei uma “cobrada” por algo que teria dito sobre uma pessoa a uma terceira. Pensei, pensei, não lembrava de ter falado aquilo. Mas, com algumas ressalvas, batia com o que eu pensava. O exagero podia ter ficado por conta de quem passou a coisa adiante. Embatuquei. Costumo assumir as coisas que digo, mas disse ou não disse? Se não disse, pensei parecido, fofoquei por dentro. Fui eu, ou não fui eu? Não fui, mas fui. É, pode ser.
O que me leva a pensar mais longe. Quantas vezes, na vida, desejamos resolver certas situações difíceis e ficamos torcendo para que isso aconteça sem que precisemos ser agentes diretos da decisão? Que atire a primeira pedra quem nunca manipulou nos bastidores para que o namorado ou namorada quebrasse o compromisso que, na verdade, estávamos loucos para terminar. Damos todos os motivos, aporrinhamos a criatura até que, exasperada, ela nos atire o anel na cara. E ficamos ali, nos esforçando para não mostrar o alívio na cara, tentando pelo contrário fazer uma pose de rejeitados. Tudo para não termos de magoar alguém diretamente, para que quando nos perguntarem o que aconteceu, podermos dizer, pelo menos da boca pra fora: “Não fui eu”!
Quer dizer, podia ter sido eu. Mas juro que não fui.