20 de jan. de 2006

Emoções são onda e não nasci pra surfista

Sou pouco dada a emoções violentas. Sejam boas ou más. Tenho minhas raivas e meus afetos, que podem até ser profundos, mas não me lembro de sentimentos conflitantes com relação a uma determinada pessoa ou acontecimento.Vejo filmes em que os personagens passam por essa dualidade, ou por uma mutação – do ódio ao amor, ou vice-versa –, sempre com uma ponta de incredulidade, surpresa ou ceticismo. Só acredito realmente neles quando existe um componente fortemente neurótico, do tipo existente em Psicose, no qual um complexo de Édipo mal-resolvido gera a relação amor-ódio de Anthony Perkins-Norman Bates com as mulheres. Geralmente, nesse tipo de problema, o ódio fala mais forte, porque vem de longe, cristalizado ao longo do tempo.
Claro que o cinema contou fantásticas histórias de relações turbulentas, que misturam amor e raiva, a começar por E o Vento Levou, em que a batalha entre Rett Butler (Clark Gable) e Scarlett O’Hara (Vivian Leigh) é mais violenta que a Guerra Civil norte-americana em meio à qual ambos se encontram. Sem falar em Gilda, onde a guerra em surdina travada por Gilda (Rita Hayworth) e Johnny Farrell (Glenn Ford) também é mais emocionante que o ambiente em que acontece, a Segunda Guerra Mundial. Mas em nenhum momento temos dúvida de que o “ódio” nesses casos é apenas uma camada tênue, encobrindo uma situação de equívocos amororos. Veja-se Casablanca: alguém acredita que Rick Blaine realmente passou a detestar Ilsa Lund (Ingrid Bergman) depois desta tê-lo abandonado abruptamente? A raiva é apenas uma maneira de maquiar a mágoa.
Filme é filme, mesmo aqueles que pretendem ir fundo nos sentimentos humanos. Não posso basear minha compreensão das pessoas em observações a partir da tela. Mas os filmes podem ser pontos de partida para que eu reflita sobre mim mesma. Como aconteceu recentemente, ao ver “2046”, um filme chinês que recebeu o ridículo subtítulo de “Segredos do Amor” em português. O diretor, Wang Kar Wai, sabe das coisas. Sabe que a paixão quase necessita do conflito para subsistir: é preciso sofrer ou fazer sofrer para ter certeza de que existimos ou de que o outro existe. Sabe que amor é uma matéria mais sutil, em que entra uma variedade de componentes – inclusive os da paixão. Sabe que às vezes é difícil identificar as diferenças e que a vida não tem tempo de esperar que aprendamos. Há que aceitar nossos sentimentos muitas vezes aos pedaços.
E agora, pensando bem, não tenho certeza se sou ou não capaz de emoções violentas. Ainda estou viva, minha história está acontecendo. Quem pode garantir que um dia ainda não te odeie, meu amor?
Lilly Rowan

5 comentários:

Replicante Raquel disse...

Citou o filme da minha vida, ganhou meu coração. Beijo e mais beijo

Márcio disse...

Sempre um prazer te ler. A delicadez escorre da tela. Chêro!

Anônimo disse...

Ahhhh... Sua "narrativa"... Sempre marcada por uma reflexão no final. Por este motivo ainda te encho...

Anônimo disse...

Adorei tudo, mas ao dizer que a contenda de Gilda e Johnny supera a Segunda Guerra, você superou suas marcas. BRAVO!!!

Anônimo disse...

Você chega lá meu amor, garanto.