17 de jan. de 2006

Uns dois

Ele não sabia se era o ronco dela tão veementemente negado. Ela, por sua vez, às vezes, achava que era a mania diária dele de “esquecer” a porta do banheiro aberta enquanto mandava os despojos da sua alimentação pelo cano.
Semana passada, porém, mudou de idéia: era, na verdade, o barulho que ele fazia ao tomar café, alegando que “não sabia beber de outro jeito” e pedindo, encarecidamente, que ela “deixasse de frescura”.
Quando fizeram o tão esperado cruzeiro pelas ilhas gregas, presente dos filhos, ele começou a pensar que era a rapidez com que ela ficava bêbada e a vergonha que passou ao ter de levá-la de volta à cabine, praticamente rebocada.
No casamento da filha do meio, ela precisou, bem dizer, apartar uma briga dele com o pai da noiva assim que a discussão sobre política se acalorou e ele começou a berrar a plenos pulmões o hino anarquista na frente de todos os convidados, com o dedo em riste. E ela teve certeza absoluta. Mas mudou de idéia rapidamente assim que precisou acompanhar esse mesmo pai até o hospital, depois de uma queda repentina de pressão.
Mas foi numa das mais meteóricas crises tardias de TPM dela, na qual ele precisou usar a mesa da sala como escudo, protegendo-se dos pratos e xícaras que voavam como se afetados por um poltergeist, que ele marcou “nota dez” na sua escala mental. Até o dia em que ela descobriu-lhe uma pulada de cerca e agiu da pior forma possível, pelo menos pra ele: ignorou completamente.
Dia desses, depois de ouvir da boca do marido a mesma história algumas vezes, no mesmo dia, ela, com alguma pena e um pouco de receio, também passou a rever o seu ranking pessoal.
Mas foi só na noite passada, aninhado nos braços flácidos dela e sentindo-lhe as mãos alisarem seu peito, que ele teve a certeza real, quase literalmente palpável: a amava por tudo aquilo, pela mistura de todas aquelas coisas naquela mulher baixinha, gordinha, já meio enrugada e que na verdade, não tinha mudado um fiapo da sua essência nesses tantos anos de casados.
O marido não sabia, mas a mulher, aquecida por aquele peito dele já tão branco, pensou na mesma coisa. E, pela primeira vez, tendo como trilha sonora um céu que desabava, ambos concordaram em alguma coisa.
Ben Iamin

4 comentários:

Anônimo disse...

Aê, que legal, adorei a postagem, depois a gente ajeita a coisa toda.
Quanto ao texto, irretocável, como sempre. Beijo

Anônimo disse...

Hummm, isso tá me cheirando a retrato de família. Valeu Marcião, bom pacas, claro.

Anônimo disse...

ai que lindos...

Anônimo disse...

Tá bom, tá bom, vou contar de novo até 25 mil antes de fazer a mala!
Lilly