5 de jan. de 2006

Quarteto Dissonante

Valéria e Cristiano eram vizinhos de Marlene e Jurandir.
O apartamento de Marlene e Jurandir era próprio, a cobertura de Cristiano e Valéria era alugada. Maria Eduarda e Mateus, os filhos de Cristiano e Valéria, iam para a Escola Americana levados pelo motorista da madrasta de Cristiano. Marlene levava Jaqueline e Júnior para a escola pública, de metrô.
Cristiano jogava bridge e Jurandir ia ás reuniões do Sindicato. Marlene fazia boneqinhos de biscuit e Valéria tinha aulas de Literatura Francesa Medieval. Maria Eduarda e Mateus faziam equitação, o padrasto de Valéria era sócio da Hípica. Jaqueline e Junior faziam ginástica olímpica no Clube do Sindicato onde Jurandir era Diretor Social. Cristiano dirigia um carro importado da empresa do padrasto de Valéria, Jurandir dirigia uma Kombi com a logo de seu lava-a-jato pintada na lataria.
Quando Valéria e Marlene entravam juntas no elevador, o perfume francês de uma fazia a outra espirrar e a colônia da Avon da outra fazia a uma prender a respiração. Marlene sempre sorria, Valéria sempre fingia não perceber. Se Jurandir e Cristiano cruzassem no elevador, o primeiro falava sempre sobre o último jogo do Flamengo, Cristiano torcia pelo Bayern Leverkusen.
E Jurandir foi eleito síndico em reunião privativa de proprietários. Seu lema de campanha : Confraternização & Solidariedade. Primeiro ato do novo síndico: uma festa no salão. Circular nas caixinhas de correspondência: todos fantasiados, às mulheres, docinhos e salgadinhos, aos homens, cerveja. Na noite da festa Maria Eduarda e Mateus, debruçados na varanda da cobertura, viam a algazarra das crianças no playgraoud que sempre lhes fora proibido e onde Jaqueline e Junior reinavam absolutos. Cristiano escutava Mahler, Marlene estourava pipocas na cozinha do salão. Valéria chegou do cabeleireiro e tomou o elevador de serviço na garagem, Jurandir entrou com ela carregando engradados de cerveja.
E o black out!
Entre dois andares. Nos primeiros segundos, tentativas. Aperta esse botão, mexe na porta, calor, uma cerveja, parece que vai demorar, que merda de perfume forte.
Mateus e Maria Eduarda fogem pela escada, Cristiano vai atrás.
A camiseta suada, o perfume francês, a mão de Jurandir é áspera. Cristiano elogia as pipocas, Marlene enxuga as mãos no avental. O peito cabeludo de Jurandir em nada lembrava o peito bombado de Cristiano. Os peitos fartos de Marlene em nada lembravam o silicone de Valéria.
Ainda são vizinhos, não mais se cumprimentam no elevador. As aulas de Literatura Francesa Medieval aumentaram para 3 vezes por semana nos mesmos dias das reuniões extraordinárias do Sindicato. Além do bridge há também jogos de xadrez e gamão e aos bichinhos de biscuit foram acrescentados outros de pelúcia e e cursos de capinhas de botijão de gás, liquidificador etc e tal.
E Maria Eduarda e Mateus, Jaqueline e Júnior brincam no playground até a hora que bem entenderem. De médico.
Ro Druhens

5 comentários:

Márcio disse...

Bom demais olhar pela fechadura!! Grande texto!!!

Anônimo disse...

meu deus... o que comentar sobre isso... bom demais é pouco! adorei

Anônimo disse...

Obrigada digo eu, Ro. Que delirei com a dissonância. Pra 500 talheres.

Quer vender?

Beijo,

Sil

Anônimo disse...

Ro
Tá tudo tão bom...o texto, o blog, estar junto de novo. Você é a tal!
Lilly

Anônimo disse...

A ha ha! Que delícia. Você não tem jeito! Se você não tivesse resolvido terminar tudo na simplicidade, em sacanagem que, não se pode discordar, é o que vale a pena ...antes do black-out no elevador, o texto estava fascinante na definição de tipos, camadas sociais que vemos todos os dias.Quase uma tese acadêmica se socio/sacanagem. Ro! Feliz aniversário! Yeaaaaaaaa!
Ano que vem, acho que vou a Brasilia para o baile de debutante!