21 de jan. de 2006

EU TE ODEIO, MEU AMOR - jan/2006

Loop
Argentinas são mesmo muito manhosas — reclamou Cássio para si mesmo, enquanto desembarcava do trem. — Júlia o havia feito vir desde o centro de Buenos Aires até Morón, no subúrbio, para vê-la.
Andou cinco quadras pelas calçadas esburacadas até chegar à esguia travessa de sobrados proletários. No alto da escada externa, que levava ao segundo piso, lá estava Dju-Djú, o sol poente colorindo o sorriso ansioso.
Os longos cabelos ruivos trançavam-se com lençóis em torvelinhos que revelavam puro frenesi. Pulsos e tornozelos gentilmente amarrados, venda nos olhos, barriga para baixo, Jujú clamava por mais gozo, pedia céus, urrava terras, pedia para morrer assim.
Já anoitecera e Cássio caminhava de volta à estação de trem. Sentia-se leve, estranho, mas feliz. Conseguira dar a Dju-Djú o que ela tanto lhe suplicara. As suas mãos moveram-se como se comandadas por ela, enquanto a sufocava em pleno auge.
O calçamento irregular pareceu ficar mais liso. Cássio notou que seus pés não mais sentiam os buracos. Flutuava no ar. — Não posso estar apaixonado, bem agora que ela se foi, pensou.
Sentiu uma forte vertigem. Uma forte lufada o fez estancar e retroceder. Um flash de luz o tonteou por um par de segundos, mas ele prosseguiu sem hesitar, precisava sair dali.
Mais uns passos e viu-se caminhando pelas calçadas esburacadas até chegar à esguia travessa de sobrados proletários. No alto da escada externa, que levava ao segundo piso, lá estava Dju-Djú, o sol poente colorindo o sorriso ansioso.
Ordisi Raluz

20 de jan. de 2006

Emoções são onda e não nasci pra surfista

Sou pouco dada a emoções violentas. Sejam boas ou más. Tenho minhas raivas e meus afetos, que podem até ser profundos, mas não me lembro de sentimentos conflitantes com relação a uma determinada pessoa ou acontecimento.Vejo filmes em que os personagens passam por essa dualidade, ou por uma mutação – do ódio ao amor, ou vice-versa –, sempre com uma ponta de incredulidade, surpresa ou ceticismo. Só acredito realmente neles quando existe um componente fortemente neurótico, do tipo existente em Psicose, no qual um complexo de Édipo mal-resolvido gera a relação amor-ódio de Anthony Perkins-Norman Bates com as mulheres. Geralmente, nesse tipo de problema, o ódio fala mais forte, porque vem de longe, cristalizado ao longo do tempo.
Claro que o cinema contou fantásticas histórias de relações turbulentas, que misturam amor e raiva, a começar por E o Vento Levou, em que a batalha entre Rett Butler (Clark Gable) e Scarlett O’Hara (Vivian Leigh) é mais violenta que a Guerra Civil norte-americana em meio à qual ambos se encontram. Sem falar em Gilda, onde a guerra em surdina travada por Gilda (Rita Hayworth) e Johnny Farrell (Glenn Ford) também é mais emocionante que o ambiente em que acontece, a Segunda Guerra Mundial. Mas em nenhum momento temos dúvida de que o “ódio” nesses casos é apenas uma camada tênue, encobrindo uma situação de equívocos amororos. Veja-se Casablanca: alguém acredita que Rick Blaine realmente passou a detestar Ilsa Lund (Ingrid Bergman) depois desta tê-lo abandonado abruptamente? A raiva é apenas uma maneira de maquiar a mágoa.
Filme é filme, mesmo aqueles que pretendem ir fundo nos sentimentos humanos. Não posso basear minha compreensão das pessoas em observações a partir da tela. Mas os filmes podem ser pontos de partida para que eu reflita sobre mim mesma. Como aconteceu recentemente, ao ver “2046”, um filme chinês que recebeu o ridículo subtítulo de “Segredos do Amor” em português. O diretor, Wang Kar Wai, sabe das coisas. Sabe que a paixão quase necessita do conflito para subsistir: é preciso sofrer ou fazer sofrer para ter certeza de que existimos ou de que o outro existe. Sabe que amor é uma matéria mais sutil, em que entra uma variedade de componentes – inclusive os da paixão. Sabe que às vezes é difícil identificar as diferenças e que a vida não tem tempo de esperar que aprendamos. Há que aceitar nossos sentimentos muitas vezes aos pedaços.
E agora, pensando bem, não tenho certeza se sou ou não capaz de emoções violentas. Ainda estou viva, minha história está acontecendo. Quem pode garantir que um dia ainda não te odeie, meu amor?
Lilly Rowan

Previsão do Tempo

Ele disse eu te amo. Ela tremeu. E pensou são tão sábias essas tardes feitas de ruas desertas e ruídos distantes. O que estão fazendo agora os passarinhos? Para onde vão depois que nos acordam antes que seja de manhã? Onde se escondem as onze mil e seis espécies de formigas que existem no mundo?
Eu disse eu te amo você ouviu ele perguntou. Ela sentiu frio. E viu uma cortina de plástico que escondia o chuveiro, cheia de desenhos japoneses coloridos. Mentira. Ela ouviu a música que ouvia um dia quando olhava os desenhos japoneses coloridos da cortina de plástico do chuveiro.
Quando você volta ele perguntou. E disse amanhã vai ser um dia triste. Ela respirou fundo. E olhou para o canto onde calmas as malas a esperavam arrumadas. Amanhã vai ser um dia triste.
Tenho medo de te perder ela pensou. Ele não escutou. Ela entendeu que a noite ia ser longa. Abriu a caixa e foi contando pedras, como se contasse histórias. Ela juntava pedras. Não conhecia nada mais eterno do que uma pedra. Nem mais indiferente nem mais frio. Eu vou morrer um dia. Pedras e perdas, ela juntava. Tudo muito pesado e eterno.
Ele insistiu eu te amo. Ela se lembrou de um domingo e viu passar um rio. Olhou uma esquina um quintal uma janela um cachorro. E uma fonte um sino uma estrada um muro. Tenho febre.
Vou com você ela disse. Tenho pena da que virá depois ela pensou.
Silvana Guimarães

19 de jan. de 2006

Tártaro

São coisas do coração que, como o cérebro, que pensa que manda nele, nunca ninguém viu funcionando. Talvez se fosse possível abrir a cabeça de um sujeito ao mesmo tempo em que seu coração é escancarado pra fora do peito, poderíamos entender qual a mecânica que rege os conflitos que estes dois tinhosos protagonistas engendram. Você é a prova disso meu amor, diariamente doce e carinhosa e, ao mesmo tempo, desgraçadamente implicante e mandona. A vontade que tenho de te cobrir de flores é inversamente proporcional ao incontrolável impulso de te sufocar com travesseiros encharcados de óleo diesel. Esse antagonismo de sentimentos é como um motor que me leva, ora para perto, ora para longe. Quando estou afastado, sinto uma falta sufocante de seu amor incondicional e, quando por perto, não suporto sua companhia azeda e implicante. É assim, que após todos esses anos, não tenho receio de dizer que odeio você, meu amor.
Alexandre Abud

18 de jan. de 2006

Questões semânticas

— ...e foi quando eu disse a eles que a única pessoa no mundo a quem eu nunca faria mal era minha esposa.
— Você disse assim, "esposa"?
— Disse, por quê?
— Porque "esposa" é uma palavra feia pra burro.
— Ué! E como você queria que eu dissesse?
— Mulher.
— Mulher? Mas "mulher" é o feminino de "homem", não de "esposa".
— Não é, não senhor!
— Quando você fala de mim, você diz "meu homem"?
— Não, digo "meu marido".
— Que é o contrário de "esposa", não é?
— Pode até ser, mas "esposa" é feio pra burro, caralho!
— Não precisa ser grossa! A gente está só conversando!
— Eu não estou sendo grossa, eu só disse "caralho". E você não grite!
— Eu não estou gritando! É você que está sendo grossa.
— Eu devia dizer o quê? Buceta? Ou o feminino de "caralho" é muito feio pra você?
— Nossa, quanta grosseria! Eu já disse que não precisa ser estúpida! Será possível que você nunca consegue conversar nada sem...
— Lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá...
— Eu odeio quando você tapa os ouvidos e começa a berrar lá-lá-lá-lá! Que saco!
— Lá-lá-BU-CE-TÁ-lá-lá-CA-RA-LHÔ-lá-lá...
— Pára com isso!
— Lá-lá-BUN-DÃO-lá-lá-BUN-DÔ-NÁ-lá-lá...
— Pára com isso, já! Pára!
— Lá-lá-ES-PÔ-SÁ-lá-lá-lá-ES-PÔ-SÔ-lá-lá...
E foi quando ele tirou o revólver da gaveta e deu três tiros na cara dela.
Branco Leone

17 de jan. de 2006

Uns dois

Ele não sabia se era o ronco dela tão veementemente negado. Ela, por sua vez, às vezes, achava que era a mania diária dele de “esquecer” a porta do banheiro aberta enquanto mandava os despojos da sua alimentação pelo cano.
Semana passada, porém, mudou de idéia: era, na verdade, o barulho que ele fazia ao tomar café, alegando que “não sabia beber de outro jeito” e pedindo, encarecidamente, que ela “deixasse de frescura”.
Quando fizeram o tão esperado cruzeiro pelas ilhas gregas, presente dos filhos, ele começou a pensar que era a rapidez com que ela ficava bêbada e a vergonha que passou ao ter de levá-la de volta à cabine, praticamente rebocada.
No casamento da filha do meio, ela precisou, bem dizer, apartar uma briga dele com o pai da noiva assim que a discussão sobre política se acalorou e ele começou a berrar a plenos pulmões o hino anarquista na frente de todos os convidados, com o dedo em riste. E ela teve certeza absoluta. Mas mudou de idéia rapidamente assim que precisou acompanhar esse mesmo pai até o hospital, depois de uma queda repentina de pressão.
Mas foi numa das mais meteóricas crises tardias de TPM dela, na qual ele precisou usar a mesa da sala como escudo, protegendo-se dos pratos e xícaras que voavam como se afetados por um poltergeist, que ele marcou “nota dez” na sua escala mental. Até o dia em que ela descobriu-lhe uma pulada de cerca e agiu da pior forma possível, pelo menos pra ele: ignorou completamente.
Dia desses, depois de ouvir da boca do marido a mesma história algumas vezes, no mesmo dia, ela, com alguma pena e um pouco de receio, também passou a rever o seu ranking pessoal.
Mas foi só na noite passada, aninhado nos braços flácidos dela e sentindo-lhe as mãos alisarem seu peito, que ele teve a certeza real, quase literalmente palpável: a amava por tudo aquilo, pela mistura de todas aquelas coisas naquela mulher baixinha, gordinha, já meio enrugada e que na verdade, não tinha mudado um fiapo da sua essência nesses tantos anos de casados.
O marido não sabia, mas a mulher, aquecida por aquele peito dele já tão branco, pensou na mesma coisa. E, pela primeira vez, tendo como trilha sonora um céu que desabava, ambos concordaram em alguma coisa.
Ben Iamin

5 de jan. de 2006

Quarteto Dissonante

Valéria e Cristiano eram vizinhos de Marlene e Jurandir.
O apartamento de Marlene e Jurandir era próprio, a cobertura de Cristiano e Valéria era alugada. Maria Eduarda e Mateus, os filhos de Cristiano e Valéria, iam para a Escola Americana levados pelo motorista da madrasta de Cristiano. Marlene levava Jaqueline e Júnior para a escola pública, de metrô.
Cristiano jogava bridge e Jurandir ia ás reuniões do Sindicato. Marlene fazia boneqinhos de biscuit e Valéria tinha aulas de Literatura Francesa Medieval. Maria Eduarda e Mateus faziam equitação, o padrasto de Valéria era sócio da Hípica. Jaqueline e Junior faziam ginástica olímpica no Clube do Sindicato onde Jurandir era Diretor Social. Cristiano dirigia um carro importado da empresa do padrasto de Valéria, Jurandir dirigia uma Kombi com a logo de seu lava-a-jato pintada na lataria.
Quando Valéria e Marlene entravam juntas no elevador, o perfume francês de uma fazia a outra espirrar e a colônia da Avon da outra fazia a uma prender a respiração. Marlene sempre sorria, Valéria sempre fingia não perceber. Se Jurandir e Cristiano cruzassem no elevador, o primeiro falava sempre sobre o último jogo do Flamengo, Cristiano torcia pelo Bayern Leverkusen.
E Jurandir foi eleito síndico em reunião privativa de proprietários. Seu lema de campanha : Confraternização & Solidariedade. Primeiro ato do novo síndico: uma festa no salão. Circular nas caixinhas de correspondência: todos fantasiados, às mulheres, docinhos e salgadinhos, aos homens, cerveja. Na noite da festa Maria Eduarda e Mateus, debruçados na varanda da cobertura, viam a algazarra das crianças no playgraoud que sempre lhes fora proibido e onde Jaqueline e Junior reinavam absolutos. Cristiano escutava Mahler, Marlene estourava pipocas na cozinha do salão. Valéria chegou do cabeleireiro e tomou o elevador de serviço na garagem, Jurandir entrou com ela carregando engradados de cerveja.
E o black out!
Entre dois andares. Nos primeiros segundos, tentativas. Aperta esse botão, mexe na porta, calor, uma cerveja, parece que vai demorar, que merda de perfume forte.
Mateus e Maria Eduarda fogem pela escada, Cristiano vai atrás.
A camiseta suada, o perfume francês, a mão de Jurandir é áspera. Cristiano elogia as pipocas, Marlene enxuga as mãos no avental. O peito cabeludo de Jurandir em nada lembrava o peito bombado de Cristiano. Os peitos fartos de Marlene em nada lembravam o silicone de Valéria.
Ainda são vizinhos, não mais se cumprimentam no elevador. As aulas de Literatura Francesa Medieval aumentaram para 3 vezes por semana nos mesmos dias das reuniões extraordinárias do Sindicato. Além do bridge há também jogos de xadrez e gamão e aos bichinhos de biscuit foram acrescentados outros de pelúcia e e cursos de capinhas de botijão de gás, liquidificador etc e tal.
E Maria Eduarda e Mateus, Jaqueline e Júnior brincam no playground até a hora que bem entenderem. De médico.
Ro Druhens