14 de ago. de 2006

O Universo em uma casca de cada um de nós.


Bruno Accioly


‘Meu objetivo é simples. É o entendimento completo do universo, porque ele é como é e o porque da sua existência.’

- Grande merda! - pensou Fausto, enquanto ouvia de seu pai citações do famoso físico inglês Stephen Hawking; com quem tinha em comum apenas a rara doença degenerativa: Esclerose Lateral Amiotrófica. Foi uma idéia de sua mãe, no momento em que ficou sabendo dessa semelhança, tentar motivar o filho a continuar vivendo, em encontrar algum objetivo pra sua vida - mesmo que, teoricamente, tão curta. Hawking buscava, através de suas pesquisas, deixar como legado algo útil para a humanidade. Fausto repetira duas vezes a oitava série.

Diferentemente do professor lucasiano da Universidade de Cambridge, os sintomas da doença, no caso de Fausto, foram extremamente agressivos, debilitando-o em menos de dois anos; e sua família não tinha dinheiro pra comprar uma cadeira de rodas, quiçá um sistema computadorizado que permitisse com que ele se locomovesse e se comunicasse através de comandos gerados pelos movimentos de seus globos oculares. Fausto tornara-se uma ilha para si mesmo.

Máquinas filtravam seu sangue, processavam sua alimentação e eliminavam os subprodutos não utilizados. Os únicos órgãos ainda em funcionamento eram o pulmão, o coração e o cérebro.

Fausto pensava em Janete, no cheiro das rosas e em alguns textos de Clarice Linspector. O tempo passava e o desespero da doença e da solidão se transformou em raiva, depois em pânico, tristeza profunda, até pousar na forma de uma amarga indiferença. Talvez tivesse mais 2 meses de vida, pensava. Um pulmão já havia falhado, e o outro mostrava fortes sinais de desistência.

Certa noite, lamentou-se por ser burro. Stephen era um gênio; talvez, por esse motivo, ainda estivesse vivo depois de quarenta anos doente, e firme na incansável busca por uma solução aos mistérios da vida e do universo. Fausto não chegaria a três, e mal conseguia piscar.

Quando seu coração parou pela primeira vez, os médicos despenderam um esforço gigantesco para ressuscitá-lo, ajudados pelas orações de seus familiares. Voltou à vida e agüentou por mais sete dias, antes do segundo infarto; dessa vez, fatal!

Durante essa semana, chorou todas as noites, querendo que a doença e todo o resto explodisse. Que o universo inteiro explodisse; até não sobrar mais nada. Como um Big-Bang invertido (coincidentemente, teoria criada por Hawking). Mas durante um desses seus acessos de frustração – imperceptíveis a qualquer um, pois nem lágrimas seu corpo era capaz de produzir – se atentou ao carinho e a dedicação com que seus pais cuidavam dele; todo esse tempo. Revezavam em turnos limpando-o, lendo livros e notícias de jornal, conversando sobre os episódios das novelas. Ambos fortes e saudáveis, mas presos na mesma ilha do filho, em solidariedade. E em amor.

Seu universo podia ser minúsculo, quase sem massa ou influência na força gravitacional; mas pelo menos, era óbvio o motivo de sua existência.

13 de ago. de 2006

Aprisionada


Ro Druhens


Primeiro foram os olhos que negros eram como negras foram todas as noites em que vagou ao encontro deles e negros também o eram os cabelos novelos de quimeras prontos pra tecer todos os delírios e grego era o nariz como grega seria a história que a boca rasgada como se fora a navalha deixava escorrer em disfarçados sorrisos.

E os ombros eram sólidos e os braços eram longos e as mãos eram despóticas e o tronco era carvalho e as pernas raízes e os pés não eram foram pés de ir embora.

Com o vidro do porta-retrato tatuou no pulso o nome dele. Com o aço da moldura perfurou o coração. Com os dentes rasgou a foto e engoliu.

A Vida a engoliu, finalmente liberta.

Todo Dia


Alexandre Abud


Há 25 anos, a mesma coisa. O mesmo horário gravado no mesmo despertador. Os chinelos na mesma posição. O banho e a barba ao som do mesmo rádio de pilha AM, sintonizado na mesma rádio. No mesmo trabalho a mesma rotina. Chegar na repartição pública, pendurar o terno na mesma cadeira. A mesma ordem dos papéis, os mesmo carimbos, a mesma coisa. Na volta para casa, o mesmo caminho todos os dias, no velho fusca comprado zero através de um crediário de prestações fixas, idênticas. O sofá puído em seu lugar. Todos os telejornais, todos os dias. O mesmo pijama, o mesmo beijo de boa noite na mesma mulher e o mesmo sono tranqüilo. Os imbecis dormem bem. A vida seguia assim até que numa atípica segunda-feira a polia do cansado motor do fusca, exaurida pela mesma rotina de tantos anos, cedeu, partiu-se e fez com que nosso herói, pela primeira vez em décadas tivesse um imprevisto. Atordoado desceu do carro e andou pela rua a esmo, procurando uma oficina. Os imbecis, apesar de dormirem bem, perdem-se diante do inusitado. Notou que estava perto de casa e lembrou-se que naquela gaveta onde todas as ferramentas ficavam precisamente organizadas como numa mesa cirúrgica havia uma correia reserva. Decidiu ir até lá, buscar a correia e na volta acharia um mecânico. Os imbecis não têm instintos. Nas desconhecidas ruas do bairro notou, com espanto, que havia frondosas árvores, pouca gente e cheiro de jantar sendo preparado nas casas iluminadas. Irritou-se por ter passado do tradicional horário da janta, do telejornal e do beijo de boa-noite. Os imbecis não entendem o destino. Quase não percebe um casal dentro de um carro parado sob uma imensa figueira cuja rotina provavelmente era mais monótona do que a dele. Os imbecis não conhecem seus sentimentos. Espantou-se com o frenesi que tomava conta do carro e sem conhecer exatamente a razão, resolveu parar e observar escondido sob a mesma sombra. Notou que o sexo era selvagem e maravilhou-se. Notou também enorme semelhança entre a mulher do carro e sua esposa. Demorou até certificar-se de que, de fato, era ela. Os imbecis enxergam mal aquilo que não querem ver. Neste momento a cela se abriu e com ela foram libertados sentimentos desconhecidos. Imediatamente uma inédita ereção. Aproximou-se do carro com olhos de fúria até então jamais experimentados. Expulsou com uma voz que não era dele o rapaz que há pouco possuía sua amada. Estuprou-a com violência animal, ali mesmo, naquele mesmo banco da frente, sob a mesma sombra. Arrancou-lhe os dentes com uma força que não sabia existir e caminhou rua acima com passos firmes, peito estufado e cabeça erguida. Viu coisas sob ângulos nunca vistos. Decidiu prosseguir e experimentar até o fim a força da fúria que o tomava. Entrou no primeiro boteco, tomou uma pinga, arrumou uma briga dos diabos com um pedreiro desempregado, armado e embriagado. Morreu livre e feliz, afinal, não era mais um imbecil.

Nó de Marinheiro


Ben Iamin


Juntos, assim, na cama, não posso deixar de me imaginar como o personagem daquele filme que você tanto ama.
“Estou justamente aonde eu gostaria de estar”.
Vendo você assim, coladinha ao meu rosto, me dá uma vontadinha de morrer....
Agora.
Bom demais saber que somos só nós dois.
Nada de família, nada de comida, nada de emprego. Nada de nada. Tudo de nós. Quem precisa de mais?
Bom te olhar. Bom saber que você vai estar sempre aqui, pertinho, juntinho, me vendo dormir, me vendo acordar, me vendo tomar banho, me vendo cagar.
A gente perto. Um?
Adoro quando você aperta os olhos assim e me diz que anda com preguiça de dormir. E me chama pra cama, alisando o lençol.
Tô indo, vou indo.
Amo quando você me toma o celular e desliga na cara dos meus amigos.
Quando manda a minha mãe tomar no cu.
Quando vasculha meus emails.
Quando diz que eu não estou.
Quando me bate, arranha e puxa os cabelos ameaçando se matar. Ameaçando me matar.
Bom saber que somos sós. Nós dois.

Aprisionado


Replicante Raquel

No alto da montanha foi o açoite do vento. Éramos pequenos como gafanhotos que não premeditam com ruindade o fracasso de nenhuma safra. Por isso às vezes nos perdôo no alto da montanha.
De lá eu poderia olhar o mar. Tinha subido para a solidão e para o que o silêncio quisesse me dar, uns pressentidos ferozes frutos. Subi para ficar entre as árvores. A foice da Lua encontrou o lago por seu flanco oculto aberto na noite. Em volta de nós macios e solenes pisavam gravetos casais leais de caranguejos e aranhas.
Andavam assim nessa época, aos pares, e em outras? Como se desgarrariam? Parceiros nos tornamos. A Natureza tudo abarca e Jó olhava. Vivíamos os dois a mesma estação crua dos bichos. Jó olhava e os astros eram todos uma constelação de assédios. Jó começava a amassar de longe com o olhar o meu couro devagar e fundo como se eu fosse a vaca, eu não podia rir nem falar, era Vaca Amarela, mas Jó não impediu o meu grito. Desceu pelos fios brilhando cravejados carrapatos antigos. Desfazia nós, ressaca de brisa, laço de grama, vertigem. Eu quase sempre despenteada porque adormecia e vinham as formigas. Jó dava um jeito final e chamava para a mesa.
Lá dentro deslizando por tudo o seu olhar era um navio, boiava por trás da xícara à esquerda da garrafa térmica por cima do pão esticava a sua mão cheia, despencava a testa e tudo inundava a tristeza do meu bem. Jó sangrando era mais alto que as árvores, mais feroz que onças, mais manso que os bagaços rendidos no terreiro para o trabalho do Sol. Levantava e varria, varrer podia. Barata morta, mosquito, grão de arroz e de feijão, qualquer poeira, resistentes quimeras. Quando nem precisava Jó também varria. Fazíamos tanto silêncio que qualquer cisco caído era trovão. Nosso caminho foi esse, taquara e bambu, coisa aflita triturada no mato. Ouriço das pedras nosso querer e a alegria de ter sido mordida por suas formigas na encosta íngreme onde ninguém nos ensinou os perigos do amor.
Eterno e frouxo o seu cerco de olhar. Para eu não agüentar e falar. Menos que frase. Não precisava ser palavra, som que avizinhasse cercanias murmurando eu ia perder. Perderíamos ambos nosso mútuo ardor constante. Vaca Amarela. Quem falar primeiro perde todo o encanto dela.
Da montanha Jó olhou a cidade, encheu os olhos de neón. Mas antes foi aquilo. Antes foi tudo e nada, brincadeira, coisa alegre, paraíso e perdição, Jó começou com a vaca porque éramos gafanhotos. Continuou com a vaca para eu não poder me explicar, sabia o suplício que era, fazia tudo de propósito, caso tramado. Já tinha se esquecido das rusgas da tarde, mas sabia como me martirizar me calando. Decidiu então: Agora é Vaca Amarela. Quem falar primeiro... Levantou e varreu. Mu. Mu. Mu. Mu liberta. Varrer podia. Varrer curava. Varrer varria.
Varria varria varria. Voltava quase nunca redimido ao centro do silêncio onde qualquer som foi caos, desastre, um grampo meu sinistro sinal e derrocada de que antes do início dos tempos eu sempre louca me descabelava por ele. Tudo ele louco a puxar para o seu lado, tudo o que ele queria era pensar coisas assim de mim e eu não poder me defender mentindo que não. Ouriço das pedras o que ele foi, tentando me arrancar rumores.
Já tinha passado o comichão. Não estava mais inchado. Não estava mais vermelho. E de cada unha ia brotar um pé de salsa.
Jô já tinha sofrido bastante. Provoquei então Vai, Jó. Mostra tua língua prá Deus, que te priva.
Jó só riu. Não se vingou. Não me mandou raspar a panela. Pôs mais tarde uma toalha em meus ombros. Agora vamos brincar de outra coisa, falou. E começou.

O amor foi um túnel escuro até Jó chegar com o pente.
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(Imagem: Scarab Necklace..by nancyem1983 ..Album: Around The House Art...."Used with permission from CNET Networks, Inc., Copyright 200_. All rights reserved.)"

Aprisionado


Ricardo Mello


Na adolescência aprendeu a se afastar do espelho. No Maximo uma olhada no cabelo, de esguio. Jamais olho no olho.

Sua fraca auto-estima rompia-lhe os vasos quando exposta.

Se por um instante contemplasse a verdade que o olho no olho transgride, uma armadura se formava, franzindo vincos, enrugando a fronte.

Mas agora não havia jeito. O elevador tinha espelhos pelos quatro cantos. Aprisionado e sozinho. Exposto ao nu da face.

Ao primeiro sinal de desconforto, reagiu: -Ainda sou bonito, pensou franzindo a testa.

Sua frase escondia um temor que provocou, vinda das profundezas do útero cerebral, uma pergunta inesperada: -Seria a preocupação com a beleza um problema?

O golpe ficaria mais forte, como se o cérebro, cansado por anos, revoltasse buscando o consciente. -Porque reparo minha beleza em primeiro lugar?

Uma emoção invadiu os olhos, antecipando a derradeira pergunta: -Sou tão preocupado assim com as aparências ?

O inimigo cravava a espada em seu peito chegando ao ponto doloroso. Se não reagisse, morreria ali, sangrando. Seria hora de chorar pedindo perdão a si mesmo? A idéia de uma vida de aparências era inaceitável, medíocre, insuportável. Logo ele, não poderia ser.

-Mas beleza pode ser um sinal de saúde. A frase cuspida sinapse abaixo mostrava uma saída. A face reagiu com um leve sorriso de lado, pressentindo uma retirada triunfal.

-Claro, não são as aparências que me afligem e sim uma preocupação com a saúde, e isso explica minha preocupação com a beleza! Sua habilidade em construir tiradas de efeito era inabalável e com esse ultimo pensamento finalizou a desculpa salvadora.

Pelos quatro cantos, apesar da aparente derrota, o espelho sorria. Sua sabedoria milenar indicava que havia ganho outra vez. A raiz do medo mantinha-se inconsciente. Dessa vez, por pouco.

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O elevador parou no quarto andar. Ele pode ver duas portas ao fundo do corredor. Saiu e sentiu o elevador fechar em suas costas tornando tudo insuportavelmente escuro.

-Aonde estaria o interruptor? A escuridão era abissal.

-Franziu os olhos. Nada. Lembrou que havia um vaso e preferiu não se mover. Chamou o elevador. Sem ele seria impossível achar o interruptor.

Enquanto esperava, recordou sua teoria profetizada em um bar com amigos: "O índice de stress pode ser medido pela ansiedade com que esperamos o elevador. Tem gente que entristece, tem gente que aperta o botão de novo, tem gente que não para quieto."

20 segundos depois e nada do puto do elevador. O tempo, no escuro, parecia alargado e perigoso. Tateando, sempre pensando no vaso, seguiu lentamente ate achar uma porta. Hesitou.

-Seria esse o 404 ?


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Não Sei Quanto a Vocês


Pedro Rodrigues


- Não sei quanto a vocês, mas eu poderia devorar uma bela vitela inteira.
- Concordo, já passamos umas boas duas horas perambulando nestas masmorras, vamos embora.
- Não são masmorras, o local é até aconchegante para uma construção tão antiga.
- Masmorras... Quem sabe não podemos encontrar alguma? Vamos inspecionar pelo lado de fora, buscar por alçapões. Por que parar agora a busca pelos segredos e mistérios que se escondem nestas pedras anciãs?
- Que segredos e mistérios? É apenas uma capela antiga, de pedra. E você não estava agora mesmo falando em ir almoçar?
- A vitela que nos espere, chegamos até aqui, não é sempre que encontramos uma edificação desconhecida e misteriosa como esta.
- O que há de misterioso, é uma simples capela medieval do período românico.
- Românico? Veja estes entalhes nas colunas do saguão, estes padrões não surgirão na arquitetura européia até o período gótico.
- Pré-gótico.
- Que seja, são ao menos cinco séculos de diferença.
- E a altura da nave central, também não condiz com o período românico.
- Vamos com calma, não pode falar em nave de uma capela.
- Como você pode afirmar que é uma capela e não uma igreja? Veja o tamanho deste saguão!
- Não havia me dado conta disto, vocês notaram como ela parece bem maior aqui de dentro?
- Hm? É efeito da pintura. Provavelmente...
- Eu sou grata por não poder ver os afrescos do teto, parecem horripilantemente disformes.
- Efeito dos elementos e do tempo.
- E você ainda não me convenceu de que se trata de uma capela, pode bem ser uma catedral.
- Ora, também não exagere!
- Não há espaço para fiéis, certamente trata-se de um local de devoção solitária.
- Onde algum cavaleiro pode ter passado noites em claro rezando, preparando-se para a batalha.
- Se a construção já não tivesse sido abandonada muitos anos antes de surgir sequer o conceito de cavalaria.
- Não vou discutir com você. Mas parece, de qualquer modo, que já exploramos muito bem todos os três aposentos, não acham?
- Quatro.
- Como?
- Quatro aposentos.
- É mesmo? Acho que contei errado.
- Contou errado de um a quatro?
- Oras, o que há de mal, um erro bobo, não pegue no meu pé.
- Então vamos à vitela?
- Depois, vamos procurar as masmorras.
- Não há masmorras.
- Como pode ter certeza?
- Vamos para fora, por favor, estou me sentindo um tanto enclausurada.
- Nesta amplidão?
- Deixe de ser chato, vamos sair e procurar as masmorras.
- Oh, bem, vamos sair de qualquer modo.
- E Harry?
- Está nos aguardando no carro.
- Ele não quis vir?
- Não acredito que Harry deixaria esta oportunidade. Não é do seu feitio desprezar mistérios e emoções.
- Bom, ele não veio, certo? Não está aqui, como podemos todos bem ver.
- Mas você se lembra de ter ficado no carro?
- Onde mais pode estar? Vamos vocês dois, vamos embora, acho que estou com dor de cabeça. A vitela.
- Espere. Alguém concretamente se lembra de Harry ter ficado do lado de fora?
- Se ele não veio é porque ficou, qual o grande mistério sobre isto?
- Mas... Ele não veio?
- Oras isto está ficando cansativo, ele não está aqui, está? Então é porque ficou!
- Ou se perdeu.
- Em três cômodos?!
- São quatro cômodos, você mesmo me alertou.
- Hm... Sim, sim, não interessa, é impossível se perder.
Harry socava paredes impossíveis em passagens inexistentes.
- Escutem, vocês se lembram do momento exato em que entramos aqui?
- Sim, avistamos a construção ao longe, em um monte muito verde, nos interessamos em saber o que era, pois não constava no mapa. Nos aproximamos com o carro, estacionamos ao lado do bosque de ciprestes...
- E?
- E entramos, todos nós.
- Nós três.
- Eu lembro de olhar para as gárgulas da entrada e apressar meus passos. Senti calafrios sendo observada por aquelas sinistras evocações pétreas de pesadelos ancestrais.
- Não colocaria em tão belas palavras, mas senti também a necessidade de me apressar adentro da porta.
- E Harry?
- Ficou no carro, entramos apenas nós três!
- Não! Pense bem, foi ele que saiu correndo do carro e nos esperou embaixo do relevo da porta, fazendo uma ridícula careta, imitando a gárgula.
- Você pode ter razão...
- Não, isto foi hoje de manhã, em outro local.
- Ainda é manhã, e esta foi a primeira parada do dia. Não é possível que se esqueceram, foi a menos de uma hora.
- Só isso? Pareceu que estávamos aqui quase o dia todo...
- Espere, Harry não voltou depois e saiu para o gramado? Ele se apressou, entrou quase correndo assim que nos aproximamos...
- E disse: “Nenhum medo pelo desconhecido!”
- Haha, foi sim, Harry é tão divertido.
- Mas, se ele entrou, como não está aqui?
- Ele saiu de novo.
- Não, ele definitivamente não saiu de novo.
- Mas...
- Você se lembra dele ter saído?
- Acho que sim. Talvez... Oras, se ele entrou e não está aqui, certamente saiu!
- Mas você está supondo, não se lembra de verdade.
- Não, não me lembro. Também não lembro de Harry ter vindo conosco. Acho que não...
- E lembra-se dele ter ficado no carro?
- Onde mais pode ter ficado?
- É isto que estou dizendo, não sabemos se ele está ou não aqui dentro, estamos fazendo suposições, mas não conseguimos lembrar do que aconteceu a menos de uma hora.
O grito agudo lancinou os tímpanos dos homens. Por que mulheres gritam assim?
- O que foi?
- A tapeçaria, eu, a figura. Eu observava a tapeçaria e ela, ela... Me encostou, o desenho da tapeçaria estendeu a mão e me agarrou!
- Qual tapeçaria?
- Aquela com a figura de um rei sentado.
- Não há nada parecido com uma tapeçaria ou figuras humanas, apenas as cortinas apodrecidas e rotas. Sem imagens, apenas padrões mouriscos.
- Você disse que a tapeçaria a agarrou?
- Isto não importa, não há tapeçaria, ninguém agarrou seu braço.
- Vamos embora, vamos embora, por favor. O toque frio daquelas mãos, por favor, vamos embora. Não quero mais ouvir, não quero mais, por favor!
- Ouvir o que, o que está te atormentando?
- Chega, certo, chega! Vamos embora, a moça está em nervos, por favor, seja cavalheiro e respeite.
- Sim, certo, me desculpe. Vamos prontamente, Harry deve estar nos esperando com a vitela.
- Harry?
Os três dobraram uma esquina. Uma mesma e única esquina, em direção à saída que estava – como não repararam? – à sua frente.


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