11 de mai. de 2006

Rapto


Replicante Raquel

Estava úmida, sentiu o rascunho do vento em cada poro, ouvia ao longe balbucios de homens em caravana rangendo o cio, alguns em fúria, outros de leve, estremecia, a respiração arfante a impulsionou profana, levantou-se num espiral febril e dançou junto da fonte sagrada para todos.
Certa noite dançava para ninguém e ele a viu, perseguiu-a aceso, disse coisas de alma, cercou-a com indecências, ela compreendeu por que tantas odaliscas se despiam na fonte onde até então ela vinha nunca inocente sempre só se refrescar. Despiu-se para ele num átimo escuro de paixão predestinada, sem pensar, sem resolver juntaram-se nas costas de uma duna e após, no grande atrium intumescido, o sultão amarrou o turbante vitorioso e se exibiu enorme para todas. Ele não era dela.
Ela fugiu ciumenta, entre os seios trincou o frasco do licor com que embebedara os medos, cuspiu no óleo e amargou amêndoas, se feriu sem dó, se apedrejou, caminhou condenada pelas ruas exibindo a mancha, quando ele viesse beijar de novo seus montes arrepiados ela levantaria a burka e o afastaria com a pena capital da visão do sangue, o vexame da paixão vertida em mágoa de ser só ar, mais uma apenas na corte dele.
Um dia foi de novo e simplesmente o vento, desemaranhando, retecendo máscaras, caminhavam os dois sem adereço ou traço, não se reconheceram do mosaico antigo, por trás da banca com olhos de mormaço se convidaram, capturaram-se, seguiram o risco que um lagarto mágico esculpiu na areia serpenteante.
Ela cavalgou cidades com o bafo dele na nuca e o riso de ambos enchia os caminhos como um bando vadio de vagalumes, no dorso suado do puro-sangue ela pousou as ancas num sumo novo de seda e mel, couro e tabaco, liberdade de montaria e a língua ávida, cortante, áspera, que a rendia e inchava onde em cada parada ele a fazia sua era a do vento emprestada. Naquela noite ela não sentiu ciúmes, ele foi só dela, se enlaçaram e encostaram um no outro um destemor cigano, ela já não era de ninguém ainda, levava o olhar sonso do homem roubado dentro do cantil de prata, grudado, denso, cheiroso como um gume e um segredo ardente.

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imagem: Marc Chagall. Equestrienne, 1931. http://www.geocities.com/Paris/Parc/2331/russia/chagallgallery.html

7 comentários:

Márcio disse...

Voltou com tudo, hein? Lindo demais, mulher!

Anônimo disse...

e seja muito bem-vinda, bons ventos a tragam, obrigada sempre

Anônimo disse...

É bom ver que na terra de ninguém existe alguém escrevendo com tanta paixão...
Eric

Anônimo disse...

Nobre companhia!!!!!!! Este texto produziu um efeito atávico sobre mim. Beijos das arábias e obrigado pelo texto.

Anônimo disse...

Raquelita:

"Palavras, leva-as o vento..."

Que suas palavras possam chegar longe, alçando vôos, como este, de beleza e fantasia.

Anônimo disse...

Olá, dona do vento. Bons ventos a tragam.

Anônimo disse...

Em mim nao produz efeito atávico nao. Pelo menos não conheço com este nome!
Hmmm! Delícia!